Memórias de um velho banco de madeira – 7º Capítulo – O tronco e a sombra

 O tronco e a sombra

A quase totalidade das pessoas que por aqui passam, o fazem por prática de exercícios e, ou em caminhadas, muitas das quais diárias. Essas pessoas carregam em si, em suas mentes, um amontoado de receitas e orientações voltadas, sempre, à promoção de mudanças externas, buscando cada vez mais uma performance física, beleza e perfeição. Não há, por menor que seja, um esforço em direção a uma mudança interna, um aprimoramento na sua estrutura interior. Isto é natural em se tratando de povos que vivem no ocidente onde o foco do existencial está assentado na materialidade. As pessoas não conhecem a sua essência natural que deve está sempre na sublimação e grandeza.
Quando há manifestações no âmbito do que envolve o não natural, e fora do trivial diário, o número de pessoas envolvidas neste universo é muito pequeno. É notável e, reconhecidamente confortante o posicionamento de pessoas que se encontram no outro extremo do conhecimento na esfera do existencial. Foram muitas as pessoas que passaram por aqui e, se sentaram neste velho banco de madeira; não poderia, entretanto, deixar de serem relevantes e valiosas as memórias de uma pessoa que por aqui passou e, também se sentou neste banco por poucos minutos. Esteve nesta cidade a negócios e resolveu conhecer este parque.
A falta de alguém muito especial e querida em sua vida, teve que ser compensada por uma ação beneficente notável. Os poucos minutos que por aqui ficou, não como um esportista e nem como um frequentador deste parque, mas como um visitante que buscou refúgio aqui por pouco tempo, deixou impresso em minhas memórias, suas memórias com uma riqueza de detalhes valiosíssima em termos de mudança externa para uma transformação interna no mais alto grau de reconhecimento. Emocionou-se com a perda da pessoa querida, deixando cair algumas lágrimas. Emocionou-me também e só não derramei lágrimas por falta de olhos. Tudo começa a partir de um momento muito especial:
São 20:00 hs do dia 12 de dezembro num ambiente de efervescência repleto de vozes alegres e festivas, em celebração a colação de grau da turma de medicina daquele ano. É a noite de formatura da turma da Celeste. Tudo acontece em um clube de uma grande capital do Centro este do Brasil.
Ali, junto à presença de famílias tradicionais das grandes fazendas, estava também, a dos Andrades onde a filha mais velha estava para receber o seu diploma de formada em medicina. Era um momento glorioso e de muito orgulho para os seus pais. Esforço e obstinação foram determinantes nesta conquista. Nada melhor do que comemorar em grande estilo. Para tanto, reuniram-se os pais dos diplomados e resolveram fazer uma festa no mais elevado estilo. Depois que todos os formando receberam os seus diplomas, houve em seguida, um baile de gala inesquecível. O patriarca dos Andrades teve a incumbência de escolher, junto aos outros pais, as músicas para o baile. Uma viagem em férias a Paris, anos antes, fora determinante para a escolha. Decidiram então, trazer da França, um conjunto musical famoso e muito conhecido por tocar músicas tradicionais francesas de acordeom.  Depois de tudo preparado e combinado conforme o programa, começa o baile…

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Celeste, a formando dos Andrades abre o baile dançando elegantemente com o Sr. Olavo, seu pai, eternizando um momento inesquecível sob o olhar de todos os presentes ali naquele rito jubiloso. Formavam um belo par. Ele um exímio dançarino e ela, outrora uma notável professora de dança. Sua mãe, a Sra. Ferdinanda e a outra filha, a caçula Isabelle, as duas não afastavam o olhar dos dois dançarinos soltos ali no salão. Também pudera, era o casal mais lindo de todos os presentes, o foco principal de todo o baile pela destreza e a leveza do dançar. O salão estava repleto de famílias orgulhosas dos seus filhos concluindo os estudos em medicina. Era um espaço de tempo glorioso e inesquecível para todos. Estava ali, em pares, a realização de sonhos de pais e filhos eternizando uma etapa consecutiva de objetivos traçados dentro do alcance de méritos desbravados por exigências de famílias tradicionais. Nada mais natural, do que comemorar festivamente, aquele encontro entre uma geração de jovens formandos e, uma elite madura, quase totalmente formada por grandes fazendeiros. A empolgação e a descontração era geral, bem como uma ótima oportunidade para as senhoras ali presentes mostrarem seus vestidos suntuosos e suas jóias esplendentes. E os jovens?  Ah os jovens! Embevecidos pela empolgação! Bela noite!
Terminada a abertura, todos se recolhem aos seus lugares juntos aos familiares sob os aplausos dos presentes enleados. Abraços, largos sorrisos e taças vazias começam a se encher de champanha, o néctar da plenitude da solenidade dos formandos. Tudo é regozijo e alegria. E a música? Bem, ela continua para o prazer inefável de todos. Passados dez minutos sob o som animado dos acordeons, chega à hora do casal Andrades realizar a sua proeza, agora desperta: Como combinado, o Sr. Olavo toma a mão de sua esposa, a Sra. Ferdinanda e se dirigem para o centro do salão. Há uma concentração de olhares atenciosos e respeitosos em direção a ambos. Começa então, a apresentação dos dançarinos deslumbrados, sob o som dos acordeons sedutores, desta vez tocando “Les Pepees De Paris”.

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A Sra. Ferdinanda desliza leve e suave nos braços do seu esposo, numa sincronia perfeita entre passos flutuantes e acordes precisos ondulados sobre o piso marmorizado do salão, parecendo um bailado nas nuvens. O rodopiar em ondas sonoras desestimula qualquer um em querer imitá-los, tamanha a destreza do casal que tem todo o salão ao seu dispor. Não quebrando regras, porém compreendendo não ser hora para exclusividade, dois jovens conhecidos da família convidam a formando Celeste e a Isabelle, a caçula, para acompanharem seus pais. Aí, então, a empolgação toma conta de todo o salão e, de repente todo mundo quer se envolver no dançar dos “Les Pepees De Paris”. E, um bailado frenético toma conta de todo o salão, não restando um espaço vazio. Todos se encontram enfeitiçados pelo belo som dos acordeons mágicos.
A empolgação segue noite adentro até a madrugada. Ao final, muitos estão exaustos, porém todos felizes. Uma etapa de vida inesquecível chegara ao fim. No ato das despedidas, muitos abraços são trocados e votos de felicidade são semeados entre todos.
A família dos Andrades parte para a Fazenda Esperanza, dando à Celeste e a Isabelle, a oportunidade de desfrutarem de um período de férias junto aos seus pais, longe da efervescência da grande cidade.
A rotina da vida do campo segue o seu curso em meio à vastidão de terras já preparadas para o cultivo da época. A sede da fazenda continua impecável, agora mais agitada pela presença das duas filhas que passaram um longo tempo ocupado com os estudos na capital.

O Sr. Olavo, em meio aos afazeres da fazenda reacende agora, com muito entusiasmo, seus projetos e propósitos, destacando um deles como de muita urgência: Fazer uma pequena portinhola para a toca que existe em uma árvore na margem do rio, onde um pássaro costumava faze seu ninho tempos atrás. Agora que o ninho já não mais existia lá no buraco da árvore, decidiu fazer dele um experimento interessante. Antes, porém, um repasse do que lhe motivou a este intento: O Sr. Olavo era um católico fervoroso e de muita devoção. Não perdia uma missa na igreja da pequena cidade próxima à sua fazenda. Qualquer que fosse o compromisso ou um outro dever que surgisse no dia e horário da missa, este seria adiado em detrimento a obrigação de ir à missa. O ano estava terminando e ele tinha a curiosidade de saber quantas missas teria que ir no ano que logo mais iria começar. Para tanto, toda vez que tivesse que ir a missa, teria que colocar uma pequena pedrinha, um seixo, na toca da árvore. Ao final do ano, queria saber quantas pedrinhas haviam na toca, correspondente a quantidade de missas assistidas durante o ano.  O curioso nesta história era que ele costumava ir à missa, também, durante certos dias da semana, além de incluir os dias santificados com missas. Não era uma questão simples de matemática. Havia flutuações de decisões tomadas de última hora, fora dos dias normais de missas, isto é, aos domingos e dias santificados. Para ter certeza de que nada iria comprometer este seu propósito, ele achou por bem colocar uma portinhola na abertura da toca, selada a cada vez que colocasse um seixo nela. Esse seu objetivo não comprometia o relacionamento com a administração da fazenda, com a convivência familiar e nem com a rotina normal de sua vida como empresário e um grande produtor de grãos.
O mês de dezembro daquele ano para a família dos Andrades é cheio de festividade. Além das festas de fim de ano, houve  a formatura da Celeste, e mais dois aniversários no mesmo dia no penúltimo dia do ano, o da Celeste e da sua mãe Sra. Ferdinanda. Que ano festivo e produtivo aquele.
Inicia-se o ano e, os seus compromissos e objetivos fluem de forma natural, dentro da normalidade empresarial e familiar. Suas filhas e esposa desfrutam de uma vida do campo, saudáveis e cheias de vigor. Enquanto de férias, Celeste e Isabelle não interrompem seus contatos com amigos e conhecidos da capital. Tudo hoje está conectado e as comunicações fluem de forma rápidas e ininterruptas para a alegria dos mais jovens. Terminam as férias e as moças voltam para a capital para dar continuidade aos estudos. A Celeste, aproveitando da influência do seu pai junto a grandes empresários da capital, consegue estágio em um Hospital, dando início a sua carreira médica antes alçar vôo sozinha.
A sede da fazenda tem as suas particularidades com destaque para o rústico junto ao moderno. Há um espaço eminentemente caseiro para o convívio doméstico e um outro para convidados e expoentes dos meios de negócios. O quarto de dormir do casal tem os móveis nos padrões normais e, um trabalho de arte bem destacado: Trata-se de um tronco de uma árvore inhotim com um metro de altura talhado a mão por um artista local. Há também, uma decoração pendente do teto formada por quatro linhas de um material transparente segurando, na extremidade, quatro pequenas espigas de milho desidratadas e preparadas para longa duração. Estas espigas, segundo o Sr. Olavo, representam a família dos Andrades, duas espigas um pouquinho maiores que as outras duas. À noite, sob o reflexo de um abajur na mesma altura, há a projeção de uma sombra em uma parede branca, criando um cenário artístico intrigante. Foram várias as tentativas do casal em retirar a obra de arte e aquela decoração do quarto, porém nenhuma iniciativa imediata se produziu. A decoração permanece lá.
Estamos quase no fim do primeiro semestre do ano que se iniciou e os projetos e propósitos do Sr. Olavo continuam dando certo. Ele não perde uma missa, o que de certa forma não desagrada e nem contraria a Sra. Ferdinanda que cada vez mais o ama e o admira. Apenas um detalhe incomoda o Sr. Olavo quando dorme e acorda no meio da noite: A sombra na parede do quarto, do tronco e da decoração pendente do teto. Às vezes perde o sono, ficando intrigado como cenário.
A rotina do Sr. Olavo é quase sempre a mesma todos os dias. Tem o hábito de levantar cedo e fazer uma vistoria nas cercanias da sede da fazenda, chegando às vezes, ele próprio, a dirigir tratores e máquinas colhetadoras de grãos. É um homem dinâmico e muito versátil, porém austero e ás vezes arrogante. É conhecido por ter o pavio curto e de certo modo implacável e impiedoso. É, entretanto um homem de paz, respeitoso e admirado. Um detalhe que chama muito à atenção é o hábito que tem, nos dias de missa, ele mesmo selar o seu animal de estimação e ir para a igreja montado no seu imponente e belo cavalo. Quando volta da missa, nunca se esquece de colocar um seixo na toca da árvore inhotim, acendendo sempre, a curiosidade de saber, no fim do ano, quantas missas assistiu.