Blog: Uma realidade… Um excesso… Um peregrino…

Uma realidade no Mundo.

                Um excesso de Repulsa.

                          Um peregrino em Ação.

Memórias de um velho banco de madeira.

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De nada adianta varrer para debaixo do tapete os escombros feios e dolorosos da existência humana. É necessário saber conviver com eles, mesmo que a contra gosto, pois fazem parte do roteiro que nos é imposto por Deus para a evolução.
Deixe à vista, pois, aquelas belezas e grandezas que deixam os olhos lagrimejantes e enchem os corações de fé. É esta parte dos humanos que ecoa e ressoa longinquamente pelos confins do universo.
O ser humano, às vezes, é escolhido no roteiro da vida a desempenhar papéis muito difíceis. Alguns desses papéis são dolorosos e geralmente não prazerosos. São regidos por uma Ordem Superior e devem ser aceitos com resignação.
Neste velho banco de madeira sentou aqui pela primeira vez em um dia nublado um senhor com um ar de muita doçura  e um aspecto compassivo bem visível. Deixou um leque de memórias sofridas e uma força de superação tremenda.
As memórias de melhor conteúdo, aquelas que nos remetem a reflexões serão as que comporão esta e todas as demais narrativas.
Neste capítulo vamos experimentar uma belíssima ação só possível de ser realizada por alguém corajoso e muito especial. Um ato de amor do mais alto grau atestando que na humanidade há muitas joias raras e  valiosas.
É uma dessas criaturas humanas que dão um equilíbrio essencial à dinâmica do mundo. Só pode ter sido enviado do Alto para uma tarefa tão linda. Vejamos então como começa!

                     Segundo Capítulo – O anjo, o desvairado e o Oasis.

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O vento sibilava imperceptível no topo das altas dunas das areias daquele escaldante deserto do oeste do Saara.
Já era um fim de tarde e os derradeiros raios de sol dançavam ao movimento suave dos ventos sobre as montanhas andantes. Naquelas areias perdidas na imensidão de horizontes infindáveis  há quem diga que ali é o calvário das almas que sempre acreditaram no nada.

Caravanas de camelos, nômades e mascateiros passavam ao lado daquele Oasis que causava arrepios e temores. Havia uma recomendação clara a todos aos que ali buscavam guarida. Aos não cumpridores da gratidão do saciar havia tão somente o castigo final de não mais poder saciar em outro Oasis buscado.
Figuras perceptíveis apenas na mente daquelas almas vagantes que por ali se perdiam desfilavam e buliam na cabeleira das dunas desfiguradas no início da noite.
O frio do anoitecer já afetava a monotonia quente do lugar perdido. O Oasis, para os impávidos, permanecia intocável sem candidato ao ato da ousadia e do acaso.
Mas… Espere!  Lá, lá no meio do desfile desafinado de sombras e areias flutuantes, algo tem forma mais afinada com a crença das miragens em corpo e alma.
Surge com aquele aspecto de fantasma mísero um corpo desajustado do normal que, entre a caravana e os viajantes, com sua voz rouca quase exaurida pela debilidade pedia socorro. Era um grito que se perdia inútil pelos confins daquele deserto perdido. Socorro!  Socorro!  Socorro!  Na ânsia de achar alívio, ninguém lhe via, ninguém lhe acudia. Todos lhe evitavam como se evita um leão insano e esfaimado. Buscava na sua ânsia de encontrar achego para o seu flagelo uma migalha do saciar, antes do Oasis por todos evitados.

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Não sei se fantasma era, aquele desvairado, ou as caravanas passantes os eram. Não sendo atendido por aqueles que dele fugiam com o seu mau jeito de ser desaprumado estende suas mãos com dedos em formato quase descarnados às folhas espaças da tamareira do Oasis que se curvava para saudá-lo.
O impávido desvairado se atira sem cerimônia sobre as tâmaras ali depositadas como iguaria sem igual. Parte do seu corpo em estado fractal e imoral se deposita sobre o saciar de sua fome insaciável. A outra metade mergulhada sem lisura no frescor líquido desarrumando o reflexo memorável do céu que se mostrava irredutível em terras de desertos.
O lusco fusco em um estelar distante testemunhara tão ousada aventura com final profetizado.
Saciada sua fome e sua sede, o desvairado não atenta para o aviso que lhe avisa: “Agradeça à Alah a graça do seu saciar e, parta em Paz”.
Levantou-se o desvairado já fartado. Sacudiu as areias em suas vestes desarrumadas e sem o senso da sagrada gratidão partiu impávido sem expressar nenhuma graça. Saiu carregando seu vestuário quase em trapos com as sandálias em frangalhos.
“Oh!  Ingrato airado!” Murmurou desacoroçoado o sagrado santuário no seu refinado estado.
“Faço-te uma exceção oh infeliz peregrino desvairado! Oh criatura das profundezas das desigualdades! Das minhas fontes mais cristalinas, águas mais límpida brotarão em benefício de outros que virão. Compaixão se juntará ao saciar deste sagrado Oasis.” Partiu sem destino traçado o desvairado descurado.
E o anjo ? Onde está o anjo ? Querem saber ?
Bem!  O anjo sentou neste velho banco de madeira em uma manhã nublada e deixou  impresso nele esta misteriosa e maravilhosa narrativa. Vamos encontrar o anjo! Ele é raro! Precisamos achá-lo, cumprimentá-lo e até abraçá-lo!

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Estamos agora muito longe do deserto. Aqui é tudo Oasis em toda parte. As únicas areias daqui são as areias das praias sempre lotadas. As dunas daqui são branca-amarronzadas e, muitas outras verdes cheias de vidas amedrontadas.
É uma noite fria de julho e esta rua do meu bairro tem gente daqui e de muitos outros bairros. Em uma parte dela está quase vazia a esta hora. Próximo a ela há um supermercado que busco para repor as necessidades alimentícias quase diárias da minha família. Atravesso o farol e… Lá está um reboliço…
Apenas eu, solitário, ao atravessar a rua naquele horário não esperava encontrar ali nenhuma arruaça. A minha direita, na rua, vários veículos aguardavam o sinal abrir para passarem. Nesta hora começa o alvoroço: Um travesti tresloucado abordava os veículos ali parados, criando uma situação embaraçosa para todos os que presenciavam a cena.  Os ocupantes dos veículos xingavam e arremessavam objetos em direção àquela criatura considerada por eles como horrorosa. Enquanto isso outros fechavam os vidros dos carros num gesto claro de repúdio.
Era uma situação por demais embaraçosa. Aquele travesti implorava por ajuda alegando estar sem se alimentar por quase uma semana. Seu aspecto próximo a cadavérico atestava tal alegação.
Ninguém lhe atendia. Aquela figura bizarra para os padrões humanos ditos normais em desespero gritava: Moço!  Estou morrendo!  Faz dias que não consigo recursos para me alimentar. Ajudem-me! Socorro! Socorro! Socorro!
Sem que ninguém lhe atendesse aos apelos, o sinal de trânsito se abre e, os motoristas partem em disparada como numa largada de fórmula 1. Só sobraram naquela cena eu em pé na calçada, pasmado e, o travesti alucinado aos gritos no meio da pista. Durou pouco, pois a rua foi ficando novamente cheia de veículos passando apressados ao sinal aberto para eles. Ziguezagueavam para não atropelar o travesti. Gritos e xingamentos ecoavam ali naquele local. Para mim, não sei se o fantasma era, naquela hora, o travesti ou se os eram os veículos e seus ocupantes.
Paralisado e surpreso assisti como testemunha única aquele espetáculo dantesco.
Naquele instante, toda uma legião de anjos  que há em cada um dos seres humanos bons se manifestou em mim ali em atendimento a uma provável Ordem Superior.
Profundamente penalizado com aquela rejeitada e infeliz criatura gritei alto: Ei! Você!  Venha aqui! Aquela criatura até então sem receber atenção de ninguém prontamente atendeu àquele chamado esperançoso e se dirigiu até a calçada onde eu estava. Aquele momento foi decisivo para não ser atropelada.
Vociferou o desvairado…  Respondi-lhe: Calma! Calma! Fique aqui sentado na calçada e não saia daqui até eu voltar, pois vou buscar comida para você. Aquelas palavras ecoaram como um elixir para o travesti. Ele ficou ali sentado impaciente com os olhos cheios de lágrimas. Era um desvirtuado sem dúvida, mas um ser humano perdido e sobretudo profundamente carente.
Sua indumentária de sobrevivência, aquela que lhe cobria o corpo naquela noite deixava claro o seu estado de indigência. E, que se tratava de um desarranjo infeliz da natureza. Eu não poderia imaginar que tamanhos pecados para tamanha  provação. Seus trajes e seu calçado eram o que de pior poderia existir para cobrir seu corpo e proteger os seus pés naquela noite fria.
Ali estava alguém similar a um animal tosco, insano e faminto. Toda a revolta e suas frustrações estavam ali contidas tão somente em um breve instante de espera. Apenas o gesto daquele bom samaritano segurava a explosão de sua raiva. Pobre criatura!
Enquanto isso, apressado entrei no supermercado e fui direto à área de alimentação. Lá escolhi uma bandeja farta com variedades em carnes, legumes e verduras. Pedi à atendente para esquentar no micro-ondas e acrescentei um refrigerante de 600 ml. Fui direto até o caixa rápido e paguei apressado. Sai em direção ao desvairado e, lá chegando com a comida, ouvi uma exclamação alta: Oh! Oh! Aquela criatura debruçou-se sobre a bandeja de alimentos variados mesmo sentado ali na calçada. Nunca vi alguém tão esfomeado e com tanta pressa em saciar-se. Parecia um animal faminto e sedento ao  devorar aquele alimento com tanta voracidade.

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Aguardei por alguns instantes até que a situação se acalmasse. As minhas atitudes e o meu raciocínio lúcido estavam freados diante  daquele cenário desatinado. Terminado o saciar, o desvairado se levanta calmamente  e sem sequer olhar para o seu benfeitor partiu caminhando ereto, sóbrio  e mais equilibrado na calçada. Desapareceu aos poucos diante dos meus olhos sob a densa neblina silenciosa que começava a envolver tudo naquela noite fria e singular.
Tocado com um sentimento repentino de compaixão consegui equilibrar o emocional o suficiente para me lembrar de Madre Teresa de Calcutá, quando dizia ao abordar os pobres nas ruas sujas de Calcutá: “Todos somos irmãos e iguais”.
Reuni o meu potencial com um certo aperto no peito e fiz uma prece: 
Pi-Nath
Oh! Senhor! Deste-me tantos tesouros!
Retira de mim o aconchego de um lar sereno e, passa-o para esta criatura desamparada.
Retira de mim o alimento que sacia a minha fome e sede e, passa-os a este teu filho esquecido.
Retira de mim as vestimentas que me cobre e me conforta dia e noite e, passa-as a este desprotegido.
Retira de mim a fé e a esperança que me inundam o tempo todo e, passa-as a este descrente.
Retira de mim a sanidade que me faz equilibrado, responsável e compassivo e, passa-a a este desajustado.
Se retirardes de mim, tudo o que me concedestes e me deixares apenas com uma pequena fagulha de sanidade, onde a ti eu possa dirigir-me quando o perigo me encontrar, eu terei percebido, Oh Senhor, que não terei perdido nada.
Nesta hora, a ovelha desgarrada já tinha partido. Estava longe, alimentada e, certamente mais confortada. Mas perdida sem destino no deserto da sua insanidade. Fiquei com a incumbência de recolher a bandeja descartável e o resto do lixo espalhado na calçada. 
Voltei para o meu lar com os olhos ungidos e, lá chegando, percebi que as minhas necessidades familiar daquela noite não foram atendidas. Fui escolhido naquela noite para cumprir uma outra necessidade bem mais urgente.
Este é o anjo que não esteve no deserto. Esteve aqui na cidade. Sendo ao mesmo tempo, o Anjo e o Oasis. Senti-me privilegiado e honrado.

Pi-Nath

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