Memórias de um velho banco de madeira – 6º Capítulo – A súplica do trovão

A súplica do trovão

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Todas as pessoas que por aqui passam e se sentam neste velho banco de madeira deixam muitos tipos de memórias.  Alguns destes registros são característicos de situações momentâneas e outros são específicos de estados onde a determinação e a vontade são longas e acentuadas, geralmente em busca de resultados árduos. Há, entretanto, um tipo de memória que é específico de pessoas da terceira idade, que apresentam claros traços de um sofrimento escondido por trás do silêncio próprio desse estágio de longevidade.
Este velho banco de madeira tem um registro peculiar de um senhor da terceira idade que era, na ocasião, muito dinâmico e criativo na área da escrita. Um Escritor anônimo com muita dificuldade em concluir um trabalho literário iniciado com muita ansiedade. Ao se sentar aqui pela primeira vez, dois aspectos ficaram evidenciados:  Um sofrimento físico suportável e controlado envolvendo o perfil próprio da idade. E, um outro tormento doloroso e extremamente difícil de controlar: O sofrimento mental  escondido  atrás do silêncio. Bem!  Vamos ver como uma grande transformação aconteceu em sua vida, observando um simples fenômeno da natureza aqui perto. Em uma tarde ensolarada e de céu azul, este senhor se sentou aqui perto ao lado de um pequeno córrego. Começou a meditar como de costume. Ocorre que, até três dias atrás, uma chuva intermitente de uma semana fez correr água em todos os córregos que estavam secos aqui no parque. Apenas um dos córregos é perene, isto é, nele corre água o ano inteiro, pois é de uma mina lá na cabeceira da serra. O senhor escolhe este córrego para se sentar ao seu lado por ter água cristalina quase sempre. Neste dia, a água estava enlameada e cheia de folhas podres sendo carregadas pela correnteza. No seu superficial estado meditativo, ele teve um despertar repentino muito valioso que o transformou.  Compreendeu que a sua mente, bem como a mente da grande maioria de pessoas no seu estágio de vida carrega, de forma volumosa, mágoas, feridas nunca cicatrizadas, memórias dolorosas, desejos não alcançados, frustrações variadas, efeitos de abandono e outros suplícios, que somados aos sofrimentos físicos, próprios da idade, lhes causam tormentos de todo tipo, tornando suas vidas quase insuportáveis. Suas mentes são igualzinho ao córrego sujo. O que fazer, então, para aliviar pelo menos um pouco este drama?
Seis meses se passaram. Ele veio e se sentou novamente neste velho banco de madeira e eu compreendi a sua transformação. Ele foi orientado através da leitura de um livro  a silenciar a mente. Percebeu que a sua mente era exatamente como o córrego enlameado e cheio de folhas mortas. Aprendeu a técnica de silenciá-la através da meditação, removendo a poluição visual e sonora de memórias dolorosas, mágoas, frustrações, outros dramas e, principalmente o medo da morte que tanto atormenta as pessoas idosas. Conseguiu atingir uma fonte perene que muito lhe beneficiou e que, se  conhecida pelas maioria das pessoas idosas na mesma situação, também poderiam se beneficiar. Realizado este feito, ao se sentar aqui pela última vez, sua mente pareceu o córrego com águas limpas e cristalinas que sempre apreciou.  E, então, finalmente, terminou a sua obra literária depois que conseguiu amainar os seus tormentos.
Escreveu uma linda história que merece  uma atenção especial de pessoas de todas as idades. Este relato mostra o quanto é valioso estar sempre de bem com DEUS. Começa assim:

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Tarde luminosa. Céu desanuviado, complementando um cenário campestre com serras escarpadas e o fluir da água corrente do pequeno córrego esparramando água cristalina pelo baixo capinzal.  O cantarolar desenfreado da passarinhada eferventava a tarde avermelhada de um outono que marcava o início de uma jornada memorável. O entardecer colorido daquela estação inquietava mais ainda as já atribuladas folhas das aroeiras do pequeno sítio onde moravam dois jovens apaixonados.
Lá pelos lados dos extremos da vila, uma fumaça branca estatuava, ligeiramente, uma figura esvoaçada sem forma definida no céu mesclado de azul com o vermelhado da tarde. Sinalizava uma persistente atividade que nos dias de hoje está ficando mais escassa: Uma casa de farinha, aliás, a única da região. Numa das bordas de um grotão estreito, um canto de coruja se misturava com o piar do quero-quero para afugentar um gato ou um coelho que passava por uma seca enseada, arranhando o silêncio dos campos semi-esverdeados. Ali morava um sossego que mais parecia uma tarde quebrantada no silêncio de olmeiras encantadas.
De mãos dadas, corações aquietados e mentes em estados elevados, chega o casal de jovens recém casados ao banco de madeira sob a frondosa copa da árvore símbolo do Nordeste com o Centro-Oeste. Estão nos domínios de um pequeno sítio onde ainda existe uma atividade rural, mesmo sendo muito pequena.
Casados já há três meses, Jerônimo e a Clara não cansavam de repassar os seus sonhos, sentados sob o grande pé de aroeira que lhes proporcionava um agradável momento de paz e ternura, sempre todas as tardes e o começo do anoitecer.
Sonhos elevados a perpassar os mais dramáticos eventos que a vida sempre tem a nos reservar enquanto por ela navegarmos. Um diálogo mais tendente a entendimento do que discussões tem início entre os apaixonados:
Jerônimo – Amor, nossas vidas têm, sempre, uma pitada de repetições, dia sim, o outro também. Este lugar perdeu o encanto nos últimos tempos. Lembro-me de quando havia muitas famílias aqui, produzindo verduras, café, rapadura, criação de cabras, cabritos e outros produtos. Nos últimos anos, nada mais disso é produzido aqui. Parece que só restaram nós produzindo farinha de mandioca. Até mesmo a farinha que fazemos não conseguimos vender com facilidade. Estamos fadados ao fracasso. Tudo está ficando abandonado. Cada ano que se passa parece que o lugar se afunda cada vez mais na poça de um cenário de secas amargas. É necessário que eu faça alguma coisa para que não sucumbamos na pobreza e na miséria. Tenho os meus planos como você já os conhece. Não descansarei enquanto não puder realizá-los para o nosso bem e da nossa família que um dia virá.
Quando nos casamos, diante do padre que celebrou o nosso casamento, juramos fidelidade a Deus e a nós mesmo, quando eu te disse que seria fiel a ti por toda a minha vida. Assim tu fizeste o mesmo me prometendo fidelidade eterna. Temos um compromisso eterno e, enquanto este compromisso for mantido estaremos, sempre, com as bênçãos e a proteção de Deus.
Clara – Amor, eu sei que amanhã, neste mesmo horário, tu não estarás mais aqui. Terás dado início a tua jornada em busca dos teus sonhos. Eu ficarei bem, com a minha mãe e minha irmã. Juntas tocaremos a nossa pequena fábrica de farinha até quando Deus quiser. Ficarei a tua espera dure o quanto durar. Quando de ti eu sentir saudades me pegarei às orações que sempre me fortaleceram. Não estarei só. Estarei sempre com Deus. Ele me manterá esperançosa do teu regresso.

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Do lado Leste, escurecendo a toda pressa, a cortina estrelada da noite já se espalhava acima do horizonte. Do lado Oeste, alguns filetes avermelhado da luz do dia ainda persistiam, sendo logo cobertos pelo escuro da noite contemplando as estrelas do lado leste.

Cortejado por um céu semeado de estrelas brilhando longinquamente, um luar esplendoroso inunda tudo na terra dos sonhadores inquietos, espargindo um prateado sobre o que restava da folhagem combalidas das árvores e plantas, espalhando-se até as distâncias deslembradas.
Na terra quente, reflexo do dia e no mormaço que sobrou da tarde, as graminhas escassas insistiam na busca do sereno da noite, mantendo-se eretas como filhotes de passarinhos com fome. Tudo está banhado de prata e ouro nas folhas amareladas caídas e nos galhos exauridos como fantasmas retorcendo-se no purgatório dos acontecimentos dos dias e da noites sombrias. O som do cri-cri-cri dos grilos persiste fraturando o silêncio consensual da noite. Enquanto a canção a lua deslancha suavemente, os gafanhotos roem galhos de saudades sob a sonância lírica e graciosa, afagando a noite e desordenando o silêncio do luar. Laura quebranta sua cabeça, amorosamente sobre o ombro caloroso do Jerônimo, em silêncio. Jovens apaixonados juntos, diante de um luar a testemunhar uma odisséia a se projetar, onde a coragem e o talento pela vida estarão presentes. Uma longa e épica jornada se encontra a se descortinar, exibindo frontalmente, um cenário de fé e esperança. Não é possível ter nenhuma ideia do drama que estará para por vir acontecer. Somente o ensejo de um final feliz é a visão que os apaixonados tem a esperar diante da cortina.
Vamos abrí-la e navegar na jornada repleta dos obstáculos que a vida tem, sempre, a lhes ofertar e a nos oferecer.
A lua brilhante inunda os corações dos dois apaixonados enquanto a noite avança, desbravando  a madrugada,  anunciando apressada o nascer do sol em um novo dia. A canção segue amainando o estado de ansiedade de ambos.

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Seis horas da manhã. Um dia triste como os demais para os dois apaixonados.  A luz do dia desponta radiante e gloriosamente baixa nos confins dos horizontes longínquos. É o dia da partida. Longe, latidos de cães festejando  o raiar do dia e o cantar atrasado de um galo eram a únicas manifestações do lugar na despedida melancólica do Jerônimo.
Ele e a Clara decidem não criar dramatização na despedida, até porque poderia gerar o abortamento da jornada que não era só do Jerônimo, mas também da jovem esposa  que ficaria a amargar a espera. Poderia haver o risco do transbordamento incontido de sentimentos de uma separação definitiva, o que ambos lutavam para não serem açambarcados nesta ideia. Não houve lágrimas na hora da partida. Houve sim, um apelo de coração aos Altos para que a jornada fosse curta e coroada de êxito. Ele prometeu fidelidade eterna. Ela também prometeu fidelidade eterna. Ele orou baixinho. Ela também orou baixinho. DEUS orou pelos dois, baixinho. E… O Jerônimo partiu.
O sol desponta rápido e determinado aos desafios do ocaso, enquanto o Jerônimo se distancia no caminho pedregoso que o levaria ao desconhecido. Havia por parte dele, uma vontade ferrenha de voltar. Porém, havia um empuxo maior a atirá-lo ao encontro do seu destino desconhecido.
Jerônimo era um remanescente daquilo que há de mais completo no seio da espécie humana: Tinha uma sensibilidade aflorada o tempo todo. Cada ação sua, que fosse da fala, da mente e do corpo produzia, certamente, uma reação ou um resultado bom em alguma parte do mundo. Ele sabia disso por intuição. Tinha a real espiritualidade que não era religiosidade. A sua espiritualidade era a competência pela vida dentro dos parâmetros do bem comum e do amor, regado com equilíbrio, responsabilidade e compaixão. Ele carregava em si uma mensagem valiosa que era fazer algo de bom pelos outros e isto o tornava um guerreiro nobre.
Tinha o corpo talhado para o trabalho bruto, pois era um homem do campo, destemido para qualquer tarefa que exigisse esforço. Era o que há de melhor no meio do bem. Um homem do bem.

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Não era só massa o seu perfil visual. Era também um repositório de conhecimentos, também pudera, fora o único professor de uma pequena escola na região, que infelizmente foi fechada e transferida para uma outra pequena cidade muito mais distante. Com isto Jerônimo deixara o emprego. Era também um músico autodidata que nas horas vagas praticava em dois instrumentos distintos.  Certamente não encontraria dificuldade para conseguir um trabalho, pois sabia ler e escrever bem. Tinha o porte físico de um gladiador romano e o semblante de um deus da mitologia grega.  Certamente seduziria qualquer um tivesse um trabalho disponível.
Ao deixar para trás as trilhas estreitas e pedregosas dos caminhos percorridos a pé, o jovem destemido tinha a sua cabeça mergulhada em pensamentos mesclados com saudades antecipadas da esposa e expectativas de chegar a algum lugar para descansar e trabalhar. Esta espera produzia angústia, acelerando cada vez mais a batida do seu coração e, os passos em direção ao seu destino.
Ao se aproximar de uma rodovia utilizada para transporte de grãos e cargas alegrou-se um pouco mais, pois poderia pedir uma carona a quem se dirigisse à grande capital do estado. Foram várias as tentativas para um caminhoneiro parar, até que enfim alguém parou e lhe ofereceu uma carona perguntando pra onde queria ir. Definido o destino da viagem, Jerônimo conseguiu a sua carona tanto esperada. Rodaram horas conversando, chegando a fazer uma saudável amizade. Ao chegar a um posto de apoio a caminhoneiros já perto da capital, ambos desceram e o Jerônimo teve a primeira surpresa. Uma pessoa se aproximou deste e perguntou se estava procurando trabalho. Ora! Ora! ele  não pensou duas  vezes e imediatamente respondeu que sim. O senhor que abordou o Jerônimo lhe disse que tinha trabalho em uma fazenda próxima e que precisavam de homens fortes, assim como o Jerônimo. Este abriu um largo sorriso e se despediu do amigo caminhoneiro que o abraçou desejando boa sorte. Jerônimo seguiu o homem até um galpão próximo onde outros homens se achavam acomodados. Minutos depois, um ônibus chegou e todos entraram nele em direção à presumida fazenda. Cinco horas de viagem se passaram em estradas de terras irregulares e áreas inundadas cheias de bichos selvagens, incluindo jacarés e onças. Tiveram até que atravessar um rio a barco. Por fim chegaram a um local fechado na mata de difícil acesso e desceram todos. Uma desagradável surpresa aguardava todos: Era uma propriedade onde se praticava o trabalho escravo. Não houve resistência de nenhum trabalhador, pois uma dúzia de homens armados ameaçava e intimidava quem recusasse desobedecer. Todos deveriam trabalhar no corte ilegal de madeira, arrastando  toras pesadas até a beira da estrada para que os caminhões fossem carregados.
Jerônimo junto com outros homens caíram numa cilada, uma armadilha, dessas quase impossíveis de saírem vivos. O local onde se encontravam e a situação de escravidão eram desconhecidos das autoridades do Estado. O que fazer? Nada. A saída para uma liberdade dependia apenas da astúcia deles mesmos. Mas, a astúcia por maior que fosse não teria forças diante das armas. Estas sim eram poderosas e mortais nas mãos de jagunços assassinos.
O drama daquela prisão era sufocante para o Jerônimo acostumado a viver livre no seu espaço campeiro. Não podia reagir contra os homens armados o tempo todo para não por em risco sua vida e de seus companheiros. Durante o dia, no trabalho pesado arrastando toras de árvores nobres, a vigilância era constante e, a noite, eram todos recolhidos em um grande galpão trancado com cadeados onde cozinhavam, dormiam e faziam suas necessidades ali mesmo em um canto separado. Os algozes do drama daqueles trabalhadores escravos não queriam correr o risco de serem descobertos pelas autoridades. Por essa razão, ninguém poderia fugir da vigilância dos homens armados.
Os dias, as semanas e os meses se passavam sem haver nenhuma esperança para o grupo preso ali naquelas condições de escravidão. Os homens não trabalhavam de graça: O que recebiam ao final de cada mês, geralmente não era suficiente para pagar a alimentação de cada um. Ficavam sempre devendo. Era angustiante a situação, o que criava desespero em alguns e fazia outros ficarem doentes. 
O grupo daqueles homens simples era composto de um número que trinta e cinco verdadeiras almas penadas. Este grupo já fora maior, porém reduzido ao número atual por baixa de alguns que desapareceram em circunstâncias ligadas a assassinatos. Sabiam os que ali estavam, que não poderiam adoecer, pois se isto acontecesse, havia um prazo para o infeliz sarar que era de três dias. Terminado este prazo, os jagunços tinham ordem de simular que iam levar o doente para um médico e, longe dali, o doente era executado pelos jagunços e o corpo  atirado no rio para os crocodilos. Ninguém iria jamais descobrir o que tinha acontecido. Os homens sabiam disso e tinham muito medo. O Jerônimo era o homem chave do grupo, pois era o único de maior porte físico, sendo um touro em força e saúde. Em algumas situações se colocou no lugar de três dos seus companheiros pelo fato destes se encontrarem muito fracos e sujeitos a cair. Jerônimo era um gladiador, um verdadeiro touro, igualzinho ao Ferdinando, o touro cheirador de flores, mas… Engana-se quem levar a sério a comparação. Ele era um guerreiro, um verdadeiro anjo, não um touro cheirador de flores. A sua verdadeira força estava adormecida, guardada para ser revelada na hora certa. Era um repositório de bondade e solidariedade. Todas as noites procurava confortar seus colegas de prisão com histórias e orações cheias de pedidos a Deus para a libertação de todos.
Os tempos se passavam onde cada ano era mais difícil do que o anterior. Muitos morreram assassinados nas mesmas condições dos anteriores e, substituídos da mesma maneira ardilosa como fora com o Jerônimo quando caiu na armadilha.
Dez anos transcorreram sem que nenhuma tentativa de fuga tivesse êxito. Houveram algumas investidas fracassadas com finais trágicos para os que ousaram fugir.
A situação se tornou desesperadora quando os homens descobriram que metade do grupo seria eliminada nos próximos seis meses, devido ao fim das atividades de exploração de madeira naquela região. Nesta hora o Jerônimo decidiu agir. Planejou uma fuga, mesmo sabendo que ninguém sobreviveria nas travessias de rios cheios de jacarés, áreas de florestas fechadas com onças e outros animais ferozes. Mesmo assim decidiu fugir em busca de socorro para si e os seus companheiros. Numa noite de lua cheia, iniciou a sua arriscada aventura.

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Pela manhã, quando os jagunços deram falta do Jerônimo, não houve nenhuma preocupação por parte destes, pois sabiam que o Jerônimo não chegaria muito longe. Achavam que aquele touro, logo seria comida de jacarés na travessia do primeiro rio ou devorado por uma onça na mata fechada. Estavam enganados os jagunços.
Jerônimo era muito mais esperto do que todos poderiam imaginar e logo começou a pôr em prática o seu plano para sobreviver na fuga. Seu primeiro gesto foi fazer uma lança de madeira com uma faca que mantinha sempre escondida de todos. Escolheu uma vareta forte e longa, afiando a ponta, deixando-a como uma arma eficaz. Sua primeira caça foi uma capivara que se descuidou e foi abatida. Jerônimo era sensível e ficou abalado ao abater a capivara, pois nunca matara um animal. Retirou a parte mais nobre do animal para comer e colocou o restante do corpo do animal em um saco plástico que trazia junto com as coisas que carregava. Andou um dia inteiro com o peso, chegando a um rio que não conhecia e parou na margem. Sentou-se por alguns minutos e cautelosamente observou o movimento nas águas e nas margens.

Notou que havia jacarés nas águas e nas margens do rio que na época estava quase seco. Qualquer movimento nas águas chamava à atenção dos jacarés que corriam e nadavam em direção à ebulição. Observou, então, o local mais estreito do rio, o mais raso e, jogou alguns pedaços da capivara em outra direção no rio. Os jacarés correram e nadaram naquela direção, enquanto o Jerônimo atravessou o rio com segurança, no lugar escolhido. Safou-se do primeiro grande perigo e adentrou-se na mata fechada. Encontrou vários outros animais que, com a sua lança comprida os afastou do caminho. Ao cair da noite escolheu uma árvore alta, subia nela e se amarrou para não cair quando estivesse dormindo. Seus três primeiros dias foram muito difíceis. Alimentou-se de parte da capivara, de frutas, folhas conhecidas e, algumas vezes de um peixe, um pássaro e  um pequeno animal que caçou com a sua lança. Carregava, junto ao corpo, no saco, o resto da capivara que no quarto dia já exalava um odor de podridão muito forte. Não jogou fora o resto horrível da capivara, pois sabia que logo à frente encontraria um outro rio. De fato encontrou o rio e, outra vez repetiu o ritual do primeiro encontro.

Estudou o movimento nas águas e nas margens.  A estratégia para atravessá-lo foi a mesmo do anterior. Jogou mais uns pedaços do animal podre e, enquanto os jacarés brigavam entre si pela comida, atravessou com segurança em outro local. No quinto dia, ao cair da noite subiu em uma árvore e, depois que se amarrou, dormiu. Estava muito cansado e com fome naquela noite. Aí aconteceu um grande imprevisto que não esperava acontecer: Uma enorme jiboia subiu na árvore, atraída pelo odor podre do resto da capivara que sobrara e, laçou o Jerônimo pela cintura. Sua sorte foi que conseguiu com uma mão,  segurar o pescoço da jiboia e com a outra pegou a faca e, estraçalhou a cobra que caiu em pedaços da árvore. Não dormiu o resto da noite, pois sentia dores nas costelas pelo abraço da jiboia e, medo de que acontecesse coisa pior. Pela manhã, quando o dia clareou desceu rápido da árvore e se afastou dali rapidamente.
No sexto dia, o inesperado aconteceu: Um casal de onças apareceu na trilha que percorria  na mata.

Os animais estavam a uma certa distância e vinham apressados em sua direção. Este pensou em correr pela mata e percebeu rápido que não seria uma boa ideia. Então parou, e atirou o saco com o resto podre da capivara em direção às onças. Os animais atraídos pelo mau cheiro do que restou da capivara deixaram de lado o Jerônimo que não pensou em outra coisa senão a correr em outra direção o mais rápido possível. Três dias mais se passaram sem que o Jerônimo encontrasse algum sinal de gente ou fazendas naquela região inóspita. No nono dia, já quase sem forças físicas, com sinais próximos à exaustão, confusão mental, desnorteado de tantos apuros que passou, Jerônimo viu uma cerca de arame farpado e o que lhe restou de forças e razão o levou até o local. Ao chegar lá se atirou a um mourão de madeira, abraçando-o como se fosse o seu salvador e, exausto caiu ali mesmo. Não tinha mais a lança, a faca e nada mais do que trouxera na fuga. Mantinha no pescoço apenas um crucifixos que sempre trazia consigo e um envólucro preso na cintura com  seus documentos.  Teve muita sorte naquele momento, pois os peões de uma grande fazenda de gado, fazendo uma vistoria nas cercas ali perto, viram quando o Jerônimo chegou. Como todos estavam a cavalo, correram rápido até o homem que já não tinha mais forças para ficar em pé. Um dos homens falou via rádio com o capataz da fazenda, contando o que encontraram e foram orientados a trazer o homem até a sede da fazenda que ficava a poucos quilômetros dali. O Jerônimo acabara de ser resgatado do seu drama terrível.

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Os peões colocaram o Jerônimo em um dos cavalos e o levaram para a sede da fazenda. Não havia um médico na enfermaria, mas fora atendido por uma enfermeira que cuidou dos ferimentos até que o médico que estava a caminho chegasse. Depois de um exame preliminar, constatou-se que o caso era só de poucas feridas, exaustão e muita fome. Não demorou muito, o dono da fazenda o Sr. Borges chegou apressado, junto com outras pessoas da fazenda e amigos. O médico que veio junto o examinou e recomendou algum tempo de repouso até que o Jerônimo pudesse falar com clareza. Duas horas depois, ainda debilitado, Jerônimo contou a história sob um clima de muita apreensão. Deu detalhes precisos da localização do local onde esteve escravizado junto com os outros homens, o que logo foi assentido por um dos acompanhantes do Sr. Borges, um delegado da polícia federal que visitava a fazenda e era muito amigo do proprietário. O relato foi surpreendente do ponto de vista heróico e revelador do drama de escravidão entre exploradores de madeira da extensa região. Jerônimo trouxera junto, seus documentos que logo foram utilizados para uma busca de identidade. O delegado constatou que se tratava de uma pessoa sem nenhuma passagem pela polícia,  que não era um fugitivo da justiça e que também não era um procurado. Era um homem simples que nunca cometera um crime do mais leve possível.
O Jerônimo passou uma semana na fazenda enquanto uma grande operação policial foi planejada na capital, para desarticular  a quadrilha de jagunços responsável pelo desaparecimento de muitos homens.
A operação militar foi deflagrada, seguindo as orientações precisas do Jerônimo à distância, o que resultou num confronto de surpresa aos jagunços e exploradores de mão de obra escrava. No desbaratamento da quadrilha, vinte e seis jagunços foram mortos e outros nove apreendidos, entre eles, um capataz militar muito violento que delatou toda a formação do grupo. Entre os delatados estavam empresários madeireiros, agentes aduaneiros, políticos da capital e muitas outras pessoas. Entre todos, o mais envolvido era um Senador da República que dava cobertura estratégica a toda a organização. O trabalho desta quadrilha era desmatar áreas com madeira nobre e exportá-la para a Europa a Ásia. Era um trabalho feito por especialistas que fazia o desmatamento sem deixar clareiras abertas, para esconder a atividade. Usavam trabalho escravo com sentença de morte ao final dos trabalhos para não serem delatados e descobertos. Todos foram denunciados pela justiça e presos para responderem pelos crimes. Os trabalhadores escravos foram libertados e passaram a esperar por uma indenização pelo tempo que passaram aprisionados como escravos.

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Duas semanas depois de ser resgatado, Jerônimo passou a ser uma pessoa admirada por todos os empregados da fazenda e recebeu com grande entusiasmo, um convite do Sr. Borges para ser um dos seus empregados.
Fez amizade com todos os empregados e, numa noite encontrava-se sozinho, sentado em sua cama no galpão dormitório, quando o capataz o surpreendeu chorando. Ficou envergonhado e diante da insistência do seu chefe, contou-lhe o que passara, desde o dia em que deixou sua esposa em casa para conseguir meios de poder conduzir uma família com dignidade. Seu maior lamento foi ter passado dez anos trabalhando em regime de escravidão sem ter conseguido ganhar nenhum tostão. Seu drama foi tão comovente, junto com o seu ato heróico de ter fugido para salvar seus companheiros de escravidão, que o capataz Sr. Alceu acabou, também, chorando. Nasceu ali, uma grande amizade entre os dois homens livres. Fez um desabafo, de que só voltaria para casa, para sua esposa que a amava muito, depois que conseguisse melhorar de vida. Demorasse o que demorasse. Essa era a sua determinação.
Sabia montar em um cavalo, só não tinha muita experiência para longas cavalgadas. Ganhou um cavalo e logo mais, experiência como pantaneiro e, angariou a simpatia de todos da fazenda. Contou que também sabia tocar dois instrumentos o que despertou a curiosidade e o interesse, primeiro do capataz e, depois  do Sr. Borges que logo trouxe da capital, os dois instrumentos mencionados.
Um certo dia, o pessoal da fazenda recebeu uma comitiva de observadores de gado que vieram de outros estados e até de outros países para ver a boiada do Sr. Borges e fazer uma avaliação dos animais. O rebanho em um número de mais de dois mil bois estavam em uma área livre da fazenda, um pasto plano enorme.  Estavam todos estressados e agitados, correndo para lá e para cá diante dos olhos de todos. O Sr. Borges expressou uma grande preocupação com o que estava acontecendo no pasto, não entendendo o que se passava com a boiada. Não sabia o que fazer, pois aquilo era muito ruim para os negócios, principalmente naquele dia  tão especial. Nesta mesma hora o Jerônimo pediu permissão ao Alceu para acalmar a boiada. O Sr. Alceu comunicou ao Sr. Borges que o Jerônimo se ofereceu para acalmar os animais. O Sr. Borges não tendo outra alternativa, acabou dando a permissão, com um certo receio de ver um fracasso na frente dos convidados. Jerônimo pegou uma cadeira, seu instrumento de sopro, um trombone de vara e entrou no pasto, numa distância de cem metros da cerca. Sentou e começou a tocar o trombone. Uma música suave e muito linda ecoou por todo o pasto. Diante dos convidados todos boquiabertos os bois foram se aproximando do Jerônimo que impassível continuava tocando. Dez minutos foi o tempo necessário para que toda a boiada se reunisse em volta do Jerônimo, que continuava tocando aquela música. Os bois estavam todos calmos, parecendo hipnotizados pela música e, todos os convidados encantados pelo que estavam presenciando.
Alguns dos convidados já tinham ouvido falar que os animais gostam de música, mas não tinham noção de que, apenas um instrumento nas mãos de alguém habilidoso faz, junto a uma manada enorme de animais como estamos vendo aqui. Estavam estarrecidos pelo que presenciavam. Alguns sabiam que tal feito já é praticado em fazendas de gado na Europa. Só não imaginavam que veriam isto diante dos olhos o lhes causou emoções.
Jerônimo parou de tocar, pegou a cadeira e o trombone e se dirigiu à porteira do curral. O gado todo pacificado o segui até a cerca, diante dos olhares estupefatos dos convidados. A manada toda comportada junto à cerca, permitiu que os convidados vissem de perto o perfil de cada animal.   Houve assim, uma espécie de comoção que tomou conta de todos, fazendo com que se reunissem às pressas para decidirem nomear o Sr. Borges, o presidente Emérito da Associação dos Produtores de gado do Centro Oeste. Uma posição de destaque no cenário nacional e  internacional que dava força ao grupo de empresário, conferindo muito prestígio a todos os integrantes. Enfim, estava ali reunidos a nata dos criadores de gado do país. O Sr. Borges não esperava pela surpresa. Aceitou o convite demonstrando com animação muita satisfação pela bela surpresa e pela honra.

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No dia seguinte pela manhã, o Sr. Borges mandou chamar o Jerônimo até o escritório da sede. Jerônimo expressou preocupação com o chamado, chegando a pensar que, talvez tivesse feito alguma coisa errada  e por causa disso seria despedido do serviço.
Chegou à porta do escritório sendo logo recebido pelo Sr. Borges que o cumprimentou sorridente.
– Sente-se! – Sente-se Sr. Jerônimo!  – Rapaz, fiquei impressionado com o seu feito de ontem. O gado agitado no pasto deixou a mim e aos convidados todos preocupados. Felizmente tudo terminou bem com a sua iniciativa que arrancou elogios de todos. Você não é uma pessoa qualquer! Você tem uma qualidade muito útil, principalmente para nós aqui da fazenda. Confesso que, quando você entrou no pasto, tive a impressão de que seria pisoteado pelo gado agitado. Mas não foi isso o que aconteceu. A manada se acalmou com a sua música que chegou até a comover os convidados. Em função do que realizou, fui nomeado presidente de uma associação da qual tenho muito orgulho e apreço. Graças a você. Obrigado meu amigo! Eu gostaria muito de que você aceitasse o que vou lhe propor agora: Vou criar, a partir de agora, um novo cargo na fazenda e você vai ocupá-lo. Vou lhe pagar um salário melhor e você vai ocupar uma das casas que acabei de mandar construir para os administradores desta fazenda. Seja bem vindo a esta nova função. Você é da casa, agora. Boa sorte!  Jerônimo quase chorou de tanta alegria.
No dia seguinte, depois de comunicar a todos da fazenda sobre o novo cargo que criara, o Sr. Borges conversou novamente com o Jerônimo que expressava grande entusiasmo pela nova função. Recebeu a chave da nova moradia e foi se despedir dos colegas do barracão dormitório onde todos estavam, encontrando-os alegres com a sua presença na fazenda.
Jerônimo era uma alegria só, do início do dia ao final da tarde. Durante o dia era um pantaneiro normal como os outros. Saíam sempre em grupo, de no mínimo dois integrantes, visto que, em caso de perigo, um poderia dar segurança ao outro companheiro em uma extensão enorme de terra que compunha a fazenda de gado do Sr Borges. Andavam sempre armados com rifles de grosso calibre para a defesa da propriedade. Um dos trabalhos destes homens era cuidar das cercas em volta da fazenda, pois havia uma grande parte destas que eram vulneráveis à entrada de animais selvagens, principalmente onças que entravam para atacar os bovinos. No caso de encontrarem onças, a ordem primeira era atirar nelas com dardos tranquilizantes para preservá-las vivas e depois devolvê-las à natureza com chips rastreadores. Só teriam ordem de matá-las em última instância para proteger a vida dos companheiros.

Os outros homens tinham a tarefa normal do pantaneiro que era conduzir a boiada para os lugares não alagados da fazenda. Neste trabalho estava o Jerônimo, não com o seu trombone nem com o outro instrumento que era um violão, mas apenas um chicote, que às vezes, sem muita experiência chicoteava a si próprio, arrancando gargalhadas dos seus companheiros. Era um cara alegre e admirável que iluminava tudo e todos com sua simpatia.
                                              

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Em todos os fins de semana, no local que era o galpão dormitório dos homens solteiros, agora era um local previamente transformado em um salão onde se realizavam festas com bailes e churrasco para todos os empregados com suas famílias. Aqui, o Jerônimo tinha plena liberdade de dar asas ao seu violão com lindas melodias até tarde da noite. Era uma alegria solta que contagiava a todos. O Sr. Borges era uma presença quase infalível junto com sua esposa Sra. Isabelle e a  filha Sofia de dois anos. Mas… Os holofotes estavam sempre sobre o Jerônimo que tinha um quê que agradava a todos. Ao encontrá-lo, todos queriam cumprimentá-lo e abraçá-lo 
A cada dois meses, o Sr. Borges mandava vir da cidade, um grupo de músicos para animar a festa com churrasco no fim da semana. E..Era assim com esse tipo de música que o grupo se apresentava e deslanchava uma grande alegria:

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O pessoal curtia a música, o churrasco e a companhia de todos ali presentes. O salão ficava pequeno com tanta gente querendo dançar, mas havia espaço para todos. O Jerônimo também se alegrava com tudo, mas guardava, a muito custo, uma  tristeza: Sua esposa que não a retirava da cabeça e que tinha por ela um grande amor. Não dançava. Ficava recolhido a um canto, sendo sempre assediado pelos companheiros e, também pelas jovens solteiras da fazenda.

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O Sr. Borges tinha uma grande admiração por aquele homem, principalmente depois que ficou sabendo, de um dos homens libertados do trabalho escravo, quem era de fato, o Jerônimo. O relato que fez de si, quando esteve com escravo dos exploradores de madeira e, as severas condições degradantes a que todos estiveram submetidos, não estava completo: Muito do que aconteceu naquele episódio tinha sido omitido por pura simplicidade que era próprio dele como pessoa. Por exemplo, que tinha salvado a vida de alguns dos seus companheiros e, que em função da influência forte que exercia sobre o grupo dos trabalhadores, um dos jagunços recebeu ordem do seu chefe para matá-lo. Mandaram, na frente de todos, que ele se ajoelhasse para morrer. Jerônimo não obedeceu, permanecendo de pé.  Então o jagunço disparou seis vezes no Jerônimo e a arma falhou seis vezes. Então decidiram poupá-lo, prometendo que na próxima vez não falhariam. Dois dias depois o Jerônimo fugiu. Em uma ocasião anterior, para poupar a vida de um cervo que foi capturado vivo e que ia ser sacrificado para ser comido pelos jagunços, trocou a vida do animal por um fim de semana inteiro puxando toras grossas de madeira para carregar um caminhão. Isto fez dele um cara singular, perigoso para os jagunços. Por pura sorte não fora morto nesta ocasião. Outros fatos também foram omitidos. O Sr. Borges entendeu que o Jerônimo não queria que seus atos de heroísmo fossem expostos para que não o transformassem em um homem a ser cultuado. Esta era uma qualidade rara que aquele homem tinha. Só quem sabia deste fato, na fazenda, era o Sr. Alceu, o Sr. Borges e sua família. Ninguém mais.
A função que o Jerônimo ia cumprir tinha muito sentido: Quando os caminhões chegavam para transportar os bovinos para outros locais, tais como, frigoríficos, outras fazendas e até mesmo exposições, os animais ficavam visivelmente estressados, o que de certa forma contrariava com o princípio de criação da fazenda que era o de oferecer o melhor possível para os animais. Aqui, o Jerônimo com o seu trombone e a sua música se tornava essencial para uma boa performance de cuidado com os animais. Isto valorizava muito a criação e o manuseio do gado na fazendo do Sr. Borges.
Jerônimo quando não estava fazendo este trabalho era, com muita satisfação, um peão boiadeiro como os demais outros e, isto o deixava contente. Mas nem tudo era alegria em sua vida. Tinha crises de tristeza quando se encontrava sozinho. A causa era o seu grande amor que se encontrava distante e ele não tinha a menor noção de como ela estava. Isso o entristecia junto com o fato de ter sido um fracasso durante os dez anos em que fora um escravo forçado. Havia um outro problema que ele enxergava diferente das pessoas da fazenda: O assédio da algumas mulheres solteiras que o importunavam freqüentemente com intenção de namorá-lo. Tinha de lutar contra estas adversidades, reunindo forças para trabalhar por mais alguns anos e conseguir juntar recursos para retornar para casa. Ele tinha uma certeza que estava bem impregnada em sua vida: Uma promessa. Sim! Uma promessa de fidelidade que fizera a sua esposa. Sabia que se quebrasse essa promessa, qualquer coisa simples o derrubaria. Estava vivo até aquele dia porque era fiel, sobretudo a DEUS. E, isto era um consolo. Estava sendo trabalhado e preparado por DEUS para uma demonstração do Seu Poder a Amor por um homem do bem como o Jerônimo.
Em se tratando de levantar e economizar recursos para voltar para a Laura, sua esposa, Jerônimo não imaginava o que o seu benfeitor estava preparando. Este, junto com bons advogados amigos entraram na justiça com um processo indenizatório especial em favor do Jerônimo. Ia demorar um pouco sair o desfecho deste processo, pois envolvia gente grande com poderes recursais.

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Quase seis anos se passaram desde que o Jerônimo chegou a fazenda. Muita coisa mudou para melhor em todos os aspectos, tanto físicos da fazenda quanto sociais para os empregados. Havia uma clínica médica para atender a todos, moradia digna para  os empregados e outros benefícios sociais. O plantel bovino havia sido multiplicado por cinco. A fazenda era considerada um modelo para toda a comunidade dos que lidavam com gado. Dentro dos seus limites existiam reservas ambientais bem preservadas, cuidados para com todos os animais selvagens, inclusive com muitos deles sendo monitorados por chips para serem melhor preservados e observados. Dentre esses animais com chips haviam muitas onças pintadas. Algumas destas não tinham sido capturadas ainda, mais isto não era um problema urgente, pois a fazenda era muito bem vigiada e protegida. 
O Jerônimo continuava sendo o mesmo, admirado por todos e muito eficiente. Não precisava mais trabalhar a cavalo, pois na função que exercia agora andava  em uma caminhoneta.  Já tinha conseguido economizar um bom dinheiro e planejava voltar para a Laura como lhe havia prometido dentro dos dois próximos meses. Estava muito ansioso por esse dia. Queria abraçar longamente o seu grande amor.  Mas… Ele não era totalmente dono de suas ações. Havia muito mais coisas às escuras que logo seriam postas diante da luz.
Há um provérbio muito popular que diz que, onde há fartura material e muito divertimento, certamente há escassez espiritual. E, é verdade! Isto é uma regra seguida à risca em muitas sociedades e posições sociais.
A fazenda do Sr. Borges estava longe de ser uma Sodoma ou mesmo uma Gamorra.  Mas… Deus estava sendo colocado de lado por quase todos os que lá viviam. E, isto não era bom. Uma grande tempestade começou a se forma, daquelas que começam com nuvens escuras cobrindo os horizontes, fazendo os céus rugirem com trovões desenfreados, acordando e expulsando das montanhas, tudo o que era coisa viva que respirasse. Bem! Não era uma dessas tempestades que a gente já viu e, onde podemos correr e nos abrigar em algum lugar. Era uma tempestade desenhada nos bastidores dos universos do desconhecido, onde não podemos ver, nem mesmo sentir, mas que nos chegam de surpresa causando estragos na vida de quem vive despreparado e agarrado ao devaneio material.
Um dia muito especial acabou chegando. Um Sábado! Era a data de aniversário da Sofia que comemorava cinco anos. Era um dia, de fato especial, pois era também quando a Sra. Isabelle fazia aniversário. A sede da fazenda foi preparada com decoração, muita comida e diversão. Um grupo musical foi contratado para animar a festa e, mais de duzentas pessoas de vários lugares foram convidados. A comemoração começou logo de manhã quando uma arquibancada foi montada em frente à cerca de uma enorme área de pastagem verde a perder de vista. Estava planejado uma apresentação do Jerônimo e o seu trombone.

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Como sempre fazia, Jerônimo pegou uma cadeira, seu trombone e se sentou a cem metros de distância da cerca, dentro da área de pastagem. Começou a tocar… Tocar e… Tocar! Nada! Nenhum boi apareceu. Alceu, o Sr. Borges e alguns convidados cochicharam baixinho: Xi!!!! Alguma coisa estava errada.

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Não! Não!  Nada estava errada! Apenas alguma coisa cochichou nos ouvidos dos bois para esperar um pouco mais. Então… No extenso pasto verde a perder de vista, bem lá no fundo distante, os bois foram aparecendo sorrateiramente, inundando o horizonte, parecendo formigas de tão distantes que estavam. Um sorriso e uma explosão de exclamação geral tomaram conta de todos à medida que a manada gigantesca se aproximava do Jerônimo. Quase cinco minutos se passaram, de repente, todos os bovinos pararam e se aquietaram diante dele que continuava tocando… Tocando… Tocando. Um cenário espetacular que encantou a todos os presentes, arrancando elogios e causando emoções em outros.

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Foi um dia de muita alegria para as aniversariantes, seus parentes e todos os presentes. O dia havia começado muito bem. O sucesso, mais uma vez do Jerônimo com os bois foi filmado, fotografado e, a unanimidade do belo feito produziu o efeito da curiosidade em todos de conhecerem o músico. Os holofotes estiveram sobre ele por muitos minutos. O restante do dia e parte da noite estavam reservados para os festejos programados. 
Terminado o dia, todos se recolheram às suas casas e os convidados foram embora. O Jerônimo, mais uma vez estava contente pelo dia que passara. Estava animado e, não tirava da cabeça que, dentro de pouco tempo estaria junto ao seu grande amor. Já se passara sete anos desde que chegou à fazenda e, achava que já estava na hora de tomar uma decisão importante: Voltar para rever a Laura. 
No dia seguinte resolveu andar a cavalo pelos arredores da sede da fazenda, junto com o seu antigo colega de trabalho, fazendo vistorias. Estava com saudade dos galopes no cavalo que tanto estimava. Esse foi o seu dia de  grande perigo. Um braço do mundo desconhecido abriu a porta do infortúnio e, soltou uma fera sanguinária para dar uma sacudida de improviso na vida dos humanos descuidados.

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Chegam os dois na sede da fazenda, conforme costume, quando Jerônimo pressente a aproximação de uma enorme onça por trás da cerca viva se aproximando da Sra. Isabelle que estava grávida de seis meses e levava sua filha Sofia pegada na mão.  Só deu tempo de acelerar o cavalgar para uma aproximação maior ao felino. Quando terminou a cerca viva, a onça ficou frente a frente com a Sra. Isabelle e a menina. A uma distância de menos de cinco metros, o felino partiu em direção as duas para um bote fatal que, paralisadas nada podiam fazer. Antes mesmo que uma das patas do felino tocasse em uma das duas, o Jerônimo, numa rapidez incrível, já estava na frente do enorme animal. As duas mulheres caíram no chão com o susto, enquanto o valente homem se atraca com o animal. Rolam no chão com a onça rosnando e o Jerônimo gritando dentro de um poeirão que se formou com a luta dos dois no chão. A onça cravou a mandíbula enorme no peito esquerdo do Jerônimo abocanhando o ombro e metade do corpo do homem. O Jerônimo, sem nenhuma arma nas mãos, cravou os dedos das duas mãos na garganta da onça como dez pinças de aço, não chegando a perfurar a grossa pele da onça de imediato. O sangue do corpo dilacerado do Jerônimo jorrava no meio da poeira. Enquanto isso a Sra. Isabelle e a menina, sem nenhum ferimento, correm em direção à sede da fazenda aos gritos. O parceiro do Jerônimo se levanta tonto, do tombo que tomara ao ser jogado do cavalo com o susto que o animal teve ao ver a onça e, nada podia fazer diante daquela cena horrível, pois estava desarmado.
Foi uma luta fratricida e estava visível ali, que o Jerônimo não teria chance de sobreviver a aquele ataque feroz do enorme felino. A onça tinha quase três metros de comprimento, pesando mais ou menos, cento e cinquenta quilogramas.

Um animal monstruoso em tamanho.
O sangue do bravo homem, além de banhar o seu corpo, banhava também o corpo da onça que nessa altura já tinha o pescoço perfurado pelos dedos do Jerônimo e, sangrava. Ai  num ato de desespero para sobreviver, a onça larga o corpo do Jerônimo todo estraçalhado e, cambaleando, corre em direção à reserva mais próxima. Antes de desaparecer no meio do mato chegam os homens da fazenda, todos armados com rifles de grosso calibre para atirar no animal. Nesse instante, o Jerônimo, num gesto final, pede aos homens: – Não atirem nela! – Não atirem nela!  E, sucumbiu.
Aquela meia dúzia de homens armados e acostumados a ardura da vida, ficou paralisada ao ver o amigo caído no chão todo ensanguentado. Atordoados pelo acidente andavam para lá e para cá sem saber o que fazer quando chega apressado, o Sr. Borges junto com outras pessoas. Não havia um médico na fazenda, apenas um veterinário que diante daquela cena recomendou levar o Jerônimo ao hospital depois que constatou que o homem ainda respirava. Pegaram uma coberta plastificada para tentar conter o sangue que jorrava sem parar e o enrolaram todo. Um dos amigos do Sr. Borges que estava ali, vindo de helicóptero à fazenda se ofereceu para levar o homem até o hospital o mais rápido possível. Assim o fizeram. O helicóptero levantou vôo diante das pessoas presentes todas atônitas. No trajeto para o hospital, o grupo das quatro pessoas que prestavam socorro à vítima verificaram que o hospital para onde estavam seguindo não teria as condições para o socorro ao Jerônimo naquele estado. Decidiram, então, de comum acordo, seguir para o Hospital das Clínicas que tinha todas as condições para aquele caso tão extremo. Seriam mais quarenta minutos de viagem e esperavam que o Jerônimo resistisse até lá. Chegando ao heliporto do hospital, já informado do caso com antecedência, foi montado um verdadeiro cenário de socorro diante de uma situação tão extrema. Nesta hora, o Sr. borges mais calmo, lembrou-se que uma das vítimas daquela tragédia era a sua esposa e, então, ligou para ela para saber como ela estava. Ela respondeu que estava bem, apesar do grande susto.
Foi uma grande correria no hospital, pois o diretor do mesmo era muito amigo do Sr. Borges e, que conhecia pessoalmente o Jerônimo. Por isso foi dada uma atenção especial para o caso. Na sala de cirurgia, quando os médicos retiraram a coberta que o envolvia, o clima era de um desânimo geral pois o quadro era gravíssimo e, a única coisa que podia ser feito, na hora, era estancar o sangue que ainda escorria. A vítima perdera muito sangue, mas ainda respirava. Fizeram uma reunião rápida para tentar saber o que poderiam fazer por aquela criatura toda estraçalhada. Um dos médicos que ficou ao lado do paciente disse: Se essa criatura ainda respira, apesar de todo esse estrago, é porque quer viver. Então vamos tentar salvá-la. Havia ali, um dilema que nós humanos não conhecemos: Ou a eficácia da intervenção médica faz a diferença para salvar aquela criatura, ou a vontade da vítima é maior que a eficácia médica e o salva ou, o destino dela, respaldado na proteção Divina o salva do drama tão desesperador. Saberemos depois, se ela não sobreviver, que as três alternativas falharam. Se ela sobreviver, as três variáveis, juntas, fizeram a diferença.

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Os esforços para salvar aquele homem estavam bem visíveis no rosto de cada médico e integrantes de uma equipe numerosa. Decidiram fazer uma cirurgia complicada que envolvia religar todas as partes do corpo que foram cortadas pelas mordidas do felino. Depois de oito horas ininterruptas conseguiram estancar o sangue que dele saia e, religar os vasos sanguíneos, os nervos cortados e os ossos quebrados. Foram várias bolsas de sangue para recompor o que ele havia perdido.
Exaustos, toda equipe médica se reuniu e fizeram uma prece para a salvação daquele homem. O período pós operatório foi crítico, pois, esperava-se que a qualquer instante ele não resistisse e viesse a falecer. O resto do dia e durante a noite todos se revezaram para acompanhar de perto a evolução do quadro dele.
O que se passa na mente de pessoas em situação similar ao do Jerônimo, é uma incógnita. Ninguém sabe. Mas, aquele homem ainda respirando, denotava uma força incrível. A vontade de viver estava respaldada em um sonho que ele queria realizar. Dizia Einstein, que a maior força que nós humanos conhecemos é a VONTADE. Ele tinha razão.
Passados alguns dias, a equipe que cuidou do Jerônimo se perguntava: Como é possível! Este homem que chegou aqui ao hospital em pedaços não parava de surpreender, pois, depois de alguns dias, ao se refazer o curativo da parte do seu corpo que foi mais danificada, constatou-se que se restaurava de forma impressionante, surpreendendo a todos. Parecia um milagre. Mesmo em coma, seu aspecto físico se recuperava e as partes feridas se restauravam, sinalizando que o corpo se energizava. Depois de três semanas em coma, ele acorda e pede água para beber. Aqui, há uma grande surpresa para as enfermeiras que cuidavam dele: Ele ergueu a mão em cujo braço tinha sido quase decepado pela mandíbula do felino. Uma das enfermeiras correu apressada para informar ao médico que estava em seu consultório. Este ao constatar a saída do coma e o braço se movimentando, ficou maravilhado com a recuperação e, avisou a toda a equipe que operou o Jerônimo de que este tinha saído do coma e que tinha uma grande chance de se recuperar. Todos ficaram felizes com a notícia. O Sr.Borges  não parava de ligar para a recepção do hospital para saber notícias do Jerônimo e, quando soube que o mesmo saíra do coma veio visitá-lo junto com a esposa e outras pessoas da fazenda. A expectativa da recuperação do Jerônimo deixava todos da fazenda animados, pois sabiam do valor daquele homem que tinha de voltar aos afazeres da fazenda para fazê-la voltar à normalidade. Todos sentiam a sua falta. Enquanto o Jerônimo se encontrava no hospital, todos da fazenda se reuniam em um galpão, à noite, para fazerem preces e orações para a recuperação do mesmo. Todo mundo da fazenda sentiu um baque daqueles com o que tinha acontecido com o grande amigo.

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As pessoas não avaliam ou talvez não tenham tido a oportunidade de conhecer direito, o enorme poder que há por trás de orações em conjunto. Já ficou comprovado, cientificamente, que estados elevados em grupos concentrados conseguem canalizar energias poderosas em direção a alguém em estado crítico. Foi isto o que aconteceu com o Jerônimo ao receber ajuda espiritual de todos os seus amigos da fazenda. Orações e preces em fervor chegam a produzir resultados impressionantes.
O acidente com a onça tinha deixado todos da fazenda em choque e por causa disso, a rotina de trabalho ficou prejudicada pelo sentimento da falta daquele que era como um farol para todos e tudo da fazenda. Foi montada uma equipe grande de veterinários, pessoas especializadas em captura de animais selvagens e, outros homens.

Sairam todos à procura daquele felino que, nessa altura já era conhecida de alguns pantaneiros, que já tinham se encontrado com a fera à distância e, que a apelidaram de “saidera” dado o seu tamanho. Tinham de encontrar o animal para que nele fosse colocado um chip de monitoramento e, a parti daí, ser vigiado o tempo todo pelo perigo que poderia representar.
Três meses se passaram com o Jerônimo no hospital. Este se recuperava de forma notável não perdendo seus movimentos do corpo. A única diferença que se constatava nele, agora, era que parecia uma colcha de retalhos todo costurado. A surpresa da equipe pela recuperação daquele homem fez dele uma celebridade entre todos do hospital.
No final do quarto mês os médicos decidiram dar alta ao Jerônimo, recomendando ao Sr.Borges que o mesmo não fizesse nenhum esforço pelo período de, no mínimo um ano, para que não houvesse rompimento de nervos ou artérias sanguíneas. Se um acidente deste acontecesse, provocaria a sua morte.
No dia que o Jerônimo voltou para a fazenda, o Sr.Borges preparou uma recepção calorosa e festiva para o amigo que salvara a sua família.  Quando chegou a noite, o galpão onde eram guardadas as máquinas da fazenda havia sido esvaziado para dar lugar a um salão de danças em comemoração ao retorno do grande amigo de todos.
A partir do retorno do Jerônimo à fazenda, todos tinham por obrigação voluntária a participar de um culto e uma missa ao Sagrado Coração de Jesus pela recuperação do Jerônimo. Essa missa passou a ser realizada todos os domingos de manhã em uma suntuosa capelinha montada ao lado da sede da fazenda. Era também, um ato de agradecimento pela vida que todos levavam na fazenda e o resgate da Devoção à DEUS por tudo o que lhes fora concedido.
Chega então a noite tão aguardada por todos para o festejo anunciado. Iniciou-se um baile com a seguinte musica: Beijinho doce que todos apreciaram. 

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Terminada esta música rancheira, própria do povo da região, o Sr. Borges fez um discurso de boas vindas ao eterno amigo Jerônimo e anunciou a próxima música dando continuidade ao baile. 
O Jerônimo era o foco principal daquele festejo, pois a atenção de todos não poderia está orientada em outra direção, a não ser naquele homem corajoso que salvou a vida da família do Sr.Borges.

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Todos aqueles da fazenda comungavam com o que se definia como valoroso, pois sabiam que, o valor da pessoa é medido não pelas posses materiais que tem. Não pelos seus títulos acadêmicos e não pela sua posição empresarial, político-social ou por qualquer outra grandeza efêmera. O valor está no que a pessoa pode ou é capaz de fazer por outras pessoas. Este é o maior mérito e a maior grandeza que o ser humano pode alcançar. Viam todos, que o valor do Jerônimo estava no ato corajoso de oferecer a sua vida para salvar a vida de três pessoas. Isto foi maravilhoso e teve o reconhecimento de todos.
Passado aquele dia e noite de festejos pelo retorno do Jerônimo, a vida na fazenda voltou ao normal. Havia mais emergia do que antes, pois o entusiasmo, agora era bem maior do que antes. Um médico e uma enfermeira foram destacados para acompanhar a evolução do quadro de recuperação do Jerônimo. Havia uma ordem a ser cumprida, com rigor: Não fazer muito esforços para não haver perigo de rompimentos em nervos e artérias do corpo. Não havia problema por parte do Jerônimo. Ele estava ciente de sua situação.
Bem! Nos seus momentos de reflexões, Jerônimo era tomado de um sentimento de impotência diante da possibilidade de não reunir, ainda, recursos suficiente para voltar a sua terra,  pois já haviam se passados sete anos que ele estava na fazenda e, achava que não tinha economizado o suficiente, conforme seus planos, para voltar ao seu lugar de origem, cumprindo desta forma, a promessa de só retornar quando tivesse recursos suficientes para mudar a vida de sua família. Ele não esquecia de que dez anos de sua vida foram perdidos enquanto esteve encarcerado numa vida de escravidão. Não guardava raiva das pessoas que lhe fizeram aquele mal, mas sentia enormemente, a perda de todo aquele tempo a troco de nada.
Quase três anos se passaram desde o acidente com a onça, sendo que a vida do Jerônimo mudou muito neste período. Não era mais um vaqueiro boiadeiro, mas sim uma espécie de capataz, um orientador de tarefas da fazenda. Ele era um homem admirado por todos e tudo dava certo sob o seu comando, o que canalizava mais a admiração do Sr. Borges  por aquele homem tão valioso. Ele já tinha recuperado por completo todos os movimentos do corpo e se mantinha tão saudável quanto antes do acidente. Só não fazia mais o mesmo esforço físico de antes.

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Um certo dia, no final da tarde, Jerônimo chegou até o Sr. Borges e disse ao mesmo que queria falar com ele por alguns minutos. O Sr. Borges lhe dava muita atenção e foi enfático dizendo: – Amigo! Você não precisa me chamar de Senhor. Os amigos não chamam os outros amigos de Senhor! Ouça! Você tem, junto comigo o tempo que você quiser para conversar. Quero lhe ouvir!
–  Borges, eu estou pensando em fazer uma viagem. – Para onde você quer viajar, Jerônimo?
– Quero resgatar o tesouro da minha vida que está distante daqui me esperando desde a longo tempo. –  A minha esposa! Neste instante, seus olhos ficaram cheios de lágrimas o que não pode disfarçar diante do Sr. Borges. Este, também, emocionado ouve atentamente todo o histórico do amigo. Conversaram durante duas horas dentro de um clima de comoção indisfarçada. Ao final deste tempo, o Sr. Borges concordou com tudo aquilo que foi exposto pelo Jerônimo e pediu ao mesmo que lhe desse dois dias para que fosse preparado um suporte para a viagem. Jerônimo concordou.
O Jerônimo conversou com todos os conhecidos da fazenda, o que não poderia deixar de fazê-lo, pois era amigo de todos, tranquilizando-os de que voltaria. Todos tinham receio de perder aquele amigão.
Enquanto isso, o Sr.Borges  preparava um suporte para não deixar o seu grande amigo se expor a nenhum perigo. Escolheu dois dos melhores amigos do Jerônimo, aqueles capazes de fazer qualquer coisa pelo amigo e determinou que, disfarçadamente, seguissem o Jerônimo até o destino final da viagem. Só intervindo e se identificando em último caso se houvesse perigo de fato ao amigo. Assim ficou acertado.
Chegada à hora da partida, conforme combinado, o Sr. Borges entregou ao Jerônimo um envelope com dinheiro, dizendo-lhe que tudo aquilo que o Jerônimo economizou durante os dez anos em que esteve na fazenda, estava guardado e, o que havia no envelope era apenas para as despesas da viagem. O que lhe cabia de direito e conquista pelo trabalho realizado na fazenda lhe seria entregue quando o Jerônimo tivesse decidido onde ficaria afinal. Tudo isso já havia sido combinado previamente entre os dois amigos.
A Sra. Isabelle estava presente na hora da partida. Sentida naturalmente. Ela tinha uma mão milagrosa no ato de fazer pães e, preparou dois verdadeiros tesouros comestíveis para o amigo que os guardou carinhosamente, dizendo que os mesmo seriam muito úteis no momento certo. O Jerônimo partiu sob o olhar lacrimoso de quase todos da fazenda. Neste instante, o Sr.Borges confidenciou baixinho, dizendo que muito em breve ele estaria de volta.
O Jerônimo saiu da fazenda, a pé, para cumprir desta forma o que prometera a si mesmo quando há vinte anos iniciou sua odisséia. Pegaria caronas nas estradas principais, assim como fizera tempos atrás. A sua viagem de volta a sua antiga moradia na serra demoraria de uma a duas semanas, dependendo de, se conseguiria ou não, caronas para a viagem. No primeiro dia, um pensamento lhe deixava perturbado: Um dos seus amigos da fazenda lhe entregara uma faca em uma bainha de couro lindamente decorada e, um revolver carregado. O Jerônimo não costumava andar armado, mas diante dos argumentos do seu amigo sobre assaltos, a opinião deste falou mais forte. Calou-se e seguiu adiante.

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O primeiro acontecimento na jornada: Depois de caminhar por horas sem conseguir uma carona, deparou-se com uma situação que lhe chamou à atenção: Uma família com crianças pequenas, na beira da estrada pediu-lhe uma ajuda para alimentar as crianças. Jerônimo não pensou duas vezes e retirou da mochila que carregava um dos pães que a Sra. Isabelle lhe dera quando partira e o entregou àquela mãe. Ele não fez nada mais, nada menos do que aquilo que lhe era comum fazer. Pensava: Primeiro quem mais precisa, depois eu.
Um outro acontecimento bem comum nos dias de hoje quebrou a monotonia da viagem: Um bordel de beira de estrada com lindas moças na porta lhe chamou a atenção. Nesta hora, um conselho que lhe dera um dos amigos da fazenda se fez presente com toda força: – Não caia nessa! Por traz das belas pernas das moças se esconde uma armadilha que pode lhe custar caro. Ele, atento a isto, não deu atenção às moças e seguiu em frente sob as chacotas das falsas beldades. Sem que o Jerônimo tivesse a menor suspeita, seus dois amigos à distância, de carro viam tudo através de binóculos e não se surpreendia com nada do que estavam presenciando.
Depois de mais uma semana na rotina de andar a pé e de carona, saiu das rotas das estradas movimentadas e não encontrou mais caronas. O trajeto final, agora, era a pé. Seus dois amigos deixaram o carro em um local seguro e seguiram a pé, também à distância, o amigo. Em um trecho de um caminho difícil encontrou um senhor idoso que andava com dificuldade e lhe disse que estava com fome e, se ele não tinha consigo alguma coisa comestível. Não pensou outra vez, duas vezes. Pegou o segundo pão e dividiu a metade com o senhor que estava com fome. Mais adiante, viu na beira do caminho, uma cadela alimentando um monte de cachorrinhos recém nascidos. Retirou-os para um lugar mais protegido e fatiou com as mãos, a outra metade do pão. Os amigos que o seguiam admiravam o gesto bondoso do Jerônimo e se encorajavam mais ainda em saber como tudo iria terminar.
Além de uma bagagem que carregava nas costas dentro de uma mochila, carregava, também, uma outra bagagem grande em sua mente: Uma enorme expectativa de encontrar a Clara  com saúde e abraçá-la fortemente. Levava consigo,   também, um forte ressentimento de ter passado tanto tempo sem se comunicar com ela. Era um ônus bem pesado. Mas, tudo parecia se inserir dentro do plano de uma jornada que não só o Jerônimo planejara, mas um Nível Elevado determinara a forma de como tudo deveria ocorrer. Ele tinha conhecimento disso e, por esta razão, a sua culpa estava atenuada. Imaginava assim.
Enquanto isso, a Clara cumpria mais uma rotina diária, quase ininterrupta durante vinte anos, que era ir todas as tardes, ao banco de madeira que já estava bem desgastado, debaixo da frondosa árvore. Sentava-se lá desolada com um terço entre os dedos onde dedilhava as pequenas continhas do rosário, sempre com os olhos inundados de lágrimas. Sentia um desânimo que se acentuava mais forte a cada dia que se passava. Estava neste dia, desolada, mais ainda, pensando até em morrer, desiludida de tudo e de tanta espera pelo seu amor e nada de ter notícias dele. Não sabia se ainda estava vivo e, se vivo estivesse, como se encontraria e o que estaria fazendo naquela hora. Só uma certeza ela tinha, a de que estava certamente morrendo aos poucos sem ter experimentado um pouco das promessas de amor que o Jerônimo lhe cochichava ao ouvido, baixinho. Todas as tardes abria com nostalgia, um livrinho de poesias, escritas por ela, onde duas delas lhe fazia chorar de saudades. Uma delas falava com amor desta árvore bendita e, a outra… De puro amor.
Este poema havia sido composto em parceria com o Jerônimo, fato que a deixava mais ainda lacrimosa.

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 “O Eterno Tormento”

Amo esta árvore disciplinada que traz, no tronco retorcido,
um século de dor, sem um gemido, na angústia da escalada.
O vento e a chuva lhe fazem guerra, e ela se agita, transfigurada, 
propalando a benção da orvalhada e a piedade das folhas sobre a terra…
Tem ternuras infinitas pelos homens quando lhes fornece sombras
e abrigo pelos passarinhos…
Acolhe, em seu regaço, a quentura dos ninhos
e a humildade dos musgos e dos parasitas…
Há em cada raiz um grito mudo, uma contorção paralisada,
mas paira, acima de tudo, a alegria divina da ramada.
Sobre a tarde luminosa ou pela noite constelada,
a fronde verde para o céu se lança
como um cálice de esperança numa oferenda religiosa…
Deus me deu, por favor, destino igual ao desta árvore amada:
Sofrimento e resplendor! E, eu bendigo meu passado de tortura
por esta primavera de ternura, pela ascensão gloriosa deste amor!…

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“Afago”

Tu deves meu amor, estar cansada. Vem sentar junto a mim neste banco de madeira…
Eu te adorarei de alma calada, esquecido de todos e de minhas dores…
Enquanto sob a sombra desta árvore, vires rodar o mundo e seu aspecto pernicioso,
buscarei para ti, a humilde frescura da água cristalina deste lago, ao lado deste riacho, calmo…
Repara como o lago muda de cor: Ele que espelha o por do sol à tarde, o céu estrelado da noite,
e de dia põe-se a chorar de alegria, refletindo teus olhos, meu amor.
Se vieres, um momento descansar nos meus braços, as cigarras deixarão de cantar e as folhas
secas desta árvore magoada deixarão de cair para não te assustar…
Vem… Vem… Deves estar cansada… Vem para esta sombra.
Cingirei teu pulso e tua fronte amada com algema e coroa de jasmim… E, te direi, baixinho: Eu te amo Clara. 
Estes poemas, para a Clara, eram o que a vida podia lhe oferecer de mais consolador. Deles saíam suas forças para continuar vivendo e enchendo diariamente um cálice de lágrimas que transbordava a todo instante. Era um amor puro, Divino, respaldado no que há de mais belo na vida.

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As orações todos os dias, a árvore frondosa ao meio dia e as poesias da Clara eram o único trunfo que lhe dera força para viver na espera por vinte anos. A espera estava definida para ter um fim.
Enquanto isso… O destino da Clara e do Jerônimo era traçado sem temor do acaso. E, se aproximava, deixando de um lado a Clara angustiada e transbordando de aflição. Do outro lado, o Jerônimo carregando uma bagagem repleta de ansiedade e de abraços bem apertados a aguardar.
Jerônimo visualizou logo à frente o caminho tortuoso visto pela última vez há vinte anos atrás sem nenhuma mudança. Seu coração acelerou e, uma fragrância de matos e flores silvestres adormecida há tanto tempo lhe despertara uma saudade arrasadora que lhe causou uma alegria quase incontida. Pareceu, repentinamente, aquela criança feliz que fora quando pequenino correndo solto pelos capinzais. Sentia-se quase em casa, confortado. Só faltava, de fato, chegar em casa.

Olhou para cima e viu um céu carregado, anunciando a chegada de um temporal. Lembrou-se da alegria que sentia, quando depois de meses sem chuva, o céu se fechava e chovia para alegria de todos e tudo. Estava ali, formado um cenário que é por demais festejado pelos povos de toda a região. Chuva bendita.

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Lá entre as montanhas recolhidas à noite, os trovões vociferam acordando as distâncias deslembradas. Não há cânticos de galos nem revoadas de pássaros. Tudo está quiete e envolto em nuvens ameaçadoras, prontas a desaguarem fartas águas nos grotões secos, esturricados. São as chuvas de verão que trazem o alívio tão esperado.
Seus dois amigos que o seguiam à distância foram pegos de surpresa com a chuva que se aproximava e procuraram refúgio em algum lugar, deixando nesta hora, o Jerônimo a mercê dos acontecimentos que se seguirão. Era já um fim de tarde e, com a chuva tempestuosa chegando, a noite se antecipou e tudo se escureceu sombriamente.

Os raios caiam em todos os lugares e o ronco dos trovões ensurdeciam aqueles que os desafiava em seus caminhos. Jerônimo visualizou à frente, sua antiga moradia e se apressou para chegar lá antes que o grosso da chuva o alcançasse. Apressou-se com dificuldade na escuridão da precipitação tempestuosa e, já sob um clarear dos raios caindo próximo vai se achegando a casa com dificuldade. Perto desta, a plena escuridão, repentinamente, é abarcada por um raio próximo, iluminando tudo em volta, mostrando a frente da casa, onde uma janela aberta desvela a sua esposa sendo tocada na cabeça por uma mão de um homem que está ali com ela na casa. Neste instante, um redemoinho de dúvidas, má conceitos e desvirtualidades na sua mente recaem sobre sua esposa. Em síntese, Jerônimo enxergava ali, um ato de traição visível. Neste instante, a poucos passos da casa, foi tomado de corpo inteiro, de um sentimento ruim de que tinha sido jogado para trás. Achava que o ato desvelado na escuridão das noites de todo aquele tempo em que esteve ausente por vinte anos, alguém esteve presente na vida da sua esposa, confortando-a e, cobrindo-a dos afagos naturais de um casal. Estava açambarcado de todo o mal e furor que um ser humano é capaz de carregar. Parecia ter sido tomado de uma arrebatamento da fúria de mil “saideras”  e, o embravecimento traduzia a presença nele, de mil demônios em efervescência que queriam a todo custo, um desfecho trágico para todos os envolvidos naquele drama. Não pensou duas vezes. Estava com os olhos avermelhados de ódio. Mesmo debaixo da chuva, abriu a mochila e se apossou do revolver em uma das mãos e a faca na outra. A poucos passos da casa, armou a sua potencialidade física cheia de ódio e raiva e se lançou em direção à porta para derrubá-la a fim de matar aqueles dois infiéis, instantaneamente. Era uma raiva impossível de ser descrito à luz da racionalidade. A poucos centímetros da porta, já com o pé direito levantado como um aríete poderoso para o primeiro desfecho, um raio corta a silhueta do cenário trágico, produzindo um clarão como um semblante dos Céus, feito uma espada de luz flamejante que tocou o solo por três vezes seguidas, clareando tudo em volta e produzindo o estrondo triplico de um trovão em súplica:  PARE! PARE! PARE!
Jerônimo foi contido como se naquela hora uma legião de anjos viessem dos Céus em seu socorro e aplacassem a sua fúria incontida. Este recuou e se refugiou sob o teto frondoso da aroeira que ainda existia desde que esteve sob ela tempos atrás. Aos prantos, desapontado e ferido mortalmente na alma, Jerônimo desaba sobre si mesmo como se naquela hora preferisse ter morrido nas garras da “saidera”. Nada podia fazer, a não ser, deixar-se desmoronar sobre a sua frágil estrutura emocional naquela hora, mesmo sob uma chuva intensa. Cansado, frustrado e demolido ao final da jornada, adormece sobre a madeira dura, ainda intacta do banco onde por várias vezes se sentara tempos atrás em companhia de sua adorável esposa Clara. Foi abatido não por uma sonolência natural, mas por uma ação de desarme dos Céus que lhe impunha uma trégua para restabelecer a sua razão à luz dos fatos mal interpretados.

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O descortinamento do luar que se negou a testemunhar o desfecho do drama pré articulado, assumiu por completo, o cenário desfraldado daquela noite que se deleitava, agora, suavemente sob a Song to the moon de Rusalka.
O reflexo do seu fracasso fez Jerônimo se articular bravamente em um sonho travesso, para derrotar uma legião numerosa de “saideras” que queriam, de qualquer forma, derrotá-lo em mais uma contenda, desta vez em terrenos sob os domínios do inconsciente. Lutou e lutou. Derrotou-se e, derrotou-se seguidas vezes naquele cenário trucidante sem nenhuma ajuda. Sucumbiu no seu sonho desvelado e flutuou desmotivado pelos desertos das intolerâncias e insanidades determinadas pelos homens e mulheres de almas fracas.

A lua, agora com o saiote que lhe envilecia, defrauda-se majestosamente tomando conta de todo o céu como a atriz maior deste cenário em contiguidade. Tem o seu momento de glória e nada lhe importuna a sua grandiosidade no céu que é todo seu, dentro desta história.

O luar resplandecente segue a sua trajetória pela noite adentro, amainando corações e flertando com a imaginação dos escassos poetas românticos que ainda restam pelo mundo afora.

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Sinais de claridade se apressam anunciando já, um dia desanuviado lá pelos lados do Leste em homenagem aos intérpretes desavisados. Jerônimo ainda dorme. Não tem um sono e sonhos pacificados. Seus protegidos, também, dormem acomodados em estrados desconfortáveis no local que os abrigara.
Duas horas depois, Jerônimo acorda desabonado, sem vontade para nada. Girou a cabeça como se perdido estivesse e, seus olhos se fecharam como se estivessem ensaiando uma prece profunda ou, escondendo-os da luz do dia amanhecendo. Aprendeu de conselhos que ouvira em vida, que qualquer decisão deve, sempre, ser tomada à luz do equilíbrio emocional. Achou, pois que estava pacificado e decidiu ir até a casa para uma despedida amigável, porém melancólica de sua esposa Clara, num sinal claro de que o ato de perdoar lhe tomara de corpo inteiro. Dirigiu-se até a porta e nela bateu levemente.
A porta se abriu, lentamente, com o toque pausado e suave da Clara. Seu olhar e  sua fisionomia facial se transformaram, assim como se transforma toda a sua alma como uma dália no seu primeiro dia de primavera. Suas cordas vocais se abriram em êxtase profundo e….. Oh! Oh! Meu Deus!  Seus olhos brotaram como flores de lótus molhados de sublimidades dentro de um lago de águas desalinizadas. Seus braços se abriram para o Jerônimo, como uma mãe que abre os braços para acolher, logo depois que dá a luz, o seu primeiro filho tão aguardado.
Jerônimo, impávido e retraído  não demonstra qualquer gesto de receptividade, mantendo seus braços em estado de imobilidade. Não esboça de forma nenhuma qualquer sinal de alegria. Em vez disso, com a voz em rister dirigiu-se a Clara dizendo: Você me traiu! E, completou: 
– Eu cumpri, durante estes vinte anos, a promessa que fiz a você. Nunca deixei de te amar e pensar em você durante esse longo tempo. Você não imagina o que eu passei durante todo este tempo, para estar aqui, agora. Eu cheguei aqui, no final da tarde de ontem, debaixo da chuva forte, quando me aproximei da casa e vi você com este homem ai ao seu lado. Vi quando ele passou a mão sobre sua cabeça, acariciando-a. Fiquei arrasado e decepcionado decidi ficar debaixo da aroeira a noite inteira. Estou me despedindo de você. Vou embora definitivamente. Você pode ficar com esse homem aí como seu amante. 
Jerônimo estava ali com muita dificuldade. Tinha consciência de si mesmo de que o seu autocontrole emocional tentava fugir apressadamente. Estava resistindo com muito esforço. 

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Enquanto isso, a Clara e o moço ao seu lado deixaram transbordar de forma desordenada, todo um oceano de emoções diante das palavras de um herói que esteve, diariamente, na vida e na mente da Clara, durante vinte anos. O moço ao seu lado estava petrificado e a Clara destroçada com o que ouvira do Jerônimo.
Ela reuniu todas as suas forças e, em meio a um mar de lágrimas, com muita dificuldade em falar, disse:
– Jerônimo, eu nunca deixei de te amar. Durante todo esse tempo eu estive a tua espera a qualquer hora. Sofri muito com a sua ausência e todas as noites eu sonhei com o momento do seu retorno a esta casa. Este moço que está aqui ao meu lado passou a mão na minha cabeça, ontem à noite, para me acalmar, pois eu estava muito nervosa, pressentindo alguma coisa  que estava para acontecer. O nome dele é Gabriel e, é…. teu filho. Desde que começou a ter idéia do mundo, não pára de falar do seu pai que tanto te ama e espera para te conhecer desde que tinha cinco anos. Quando você partiu, eu estava grávida do Gabriel há três meses. Não falei para você para não atrapalhar o teu sonho de viajar. O Gabriel com as mãos escondendo o rosto não consegue segurar as lágrimas, diante daquela cena tão pesada para ele. Estava em um estado de choque que o deixava incapacitado de falar.
O quadro familiar se desnuda diante do Jerônimo incapacitando-o de raciocinar. De repente não conseguindo colocar ordem em seus sentimentos desaba. Seus pés e mãos tremem descontroladamente. Seus olhos se afogam em lágrimas dolorosas. Sua garganta se fecha, impedindo-o de balbuciar qualquer palavra. Todos comungam, naquela hora, de um sentimento comum que é o deixar extravasar todo o amor guardado sob as sete chaves de um compromisso sagrado nunca quebrado. Juntam-se os três em um só abraço encharcado de lágrimas e amor fraterno. Eram todos um só cálice de lágrimas transbordado. O único sentimento não cabível naquela hora era o de Perdão. Não havia o que se perdoar. Apenas desnudar todo um potencial de Amor Celeste. Estava esclarecido um terrível engano que se criara à luz de um raio e um trovão.
O universo, em toda a sua grandeza, conspirou para que aquele encontro culminasse com o sonho tão bem cultivado pelo Jerônimo, Clara e o Gabriel. Fora arquitetado por DEUS para testar os níveis do amor que semeara no mundo dos homens. Os obstáculos foram vencidos pelo profundo sentimento de amor semeado entre eles. Só o Jerônimo e DEUS sabem o perigo que todos passaram na noite passada. DEUS havia planejado esse dia com todo um cuidado de MESTRE.

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Duas horas se passaram quando os companheiros de segurança do Jerônimo decidiram se apresentar. Chegaram à porta da casa e bateram levemente. Desta vez, foi o Jerônimo quem abriu a porta e…. vocês !!!!!!! – Sim, amigo! Nós mesmos! Fomos destacados pelo Sr. Borges para lhe dar proteção até aqui a sua casa. – Entrem! Entrem! Acomodem-se! Foram apresentados a Clara e ao Gabriel, seu filho. Havia um clima de uma alegria contagiante naquele instante. Não havia nenhum vestígio do momento doloroso que envolveu a família. Conversaram por alguns minutos e, um dos seguranças tirou da mochila que carregava, um volume e o entregou ao Jerônimo dizendo ser um presente da Sra. Isabelle para ser degustado em família. Estava quase certo de que aquele alimento já devia estar estragado. Estava com receio de lhe entregar.
Jerônimo depositou o volume sobre a mesa e o abriu. Surpresa!!!! Era um pão especial, enorme que a Sra. Isabelle havia feito para a família do Jerônimo. Mais de uma semana se passara desde então e, estava perfeito. Parecia ter sido preparado há meia hora atrás.
Clara pegou uma faca e pediu ao Jerônimo que cortasse o pão. Este decidiu cortá-lo em cinco pedaços. Cortou primeiro as extremidades e, quando foi fazer os dois cortes do meio, fazendo então, cinco pedaços, notou alguma coisa que não era do pão. Percebeu um invólucro de bambu  e o abriu. Tinha um bilhete para o Jerônimo com os seguintes dizeres:
– “Meu amigo Jerônimo: Peço-lhe desculpa por ter tomado a decisão de dar proteção a você fora do seu conhecimento. Eu sei que você não iria aceitar se eu tivesse lhe comunicado. Por isso agi desta forma. Desculpe-me meu amigo. Vou deixar que você curta a sua família por uma semana. Depois eu vou enviar um meio  transporte para trazer você, toda a sua família e os móveis da sua casa para a fazenda aqui. Seu lugar é aqui com os seus amigos que tanto lhe estimam. Olhe! Não aceito um não! Ouviu? Até logo. Borges”. 
Cada um dos cinco ali presentes, comeu um pedaço do pão delicioso que a Sra. Isabelle preparou. Depois de um tempo, os dois amigos do Jerônimo se despediram de todos e partiram de volta à fazenda. Estavam contentes de ter cumprido à risca, a ordem de protegê-lo até a sua casa.
Jerônimo tinha um segredo que não podia jamais compartilhar com ninguém: O ato perverso de quase ter assassinado, a sua esposa e o seu filho na noite anterior. Teria que conviver com este drama até o fim de sua vida.

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A volta dos dois amigos foi rápida, pois tinham um meio de transporte que os levou à fazenda onde todos aguardavam com ansiedade.
O Sr. Borges preparou uma caminhonete grande e animais de carga de alguns tropeiros da região do Jerônimo, para trazerem os seus pertences  até a fazenda.
O dia do retorno do Jerônimo com a sua família foi muito aguardado por todos os seus amigos. O Sr Borges e a Sra. Isabelle prepararam uma recepção calorosa para aquela nova  família muito querida. O pequeno sítio do Jerônimo, assim como os seus móveis de madeira rústica, pesados, ficaram aos cuidados dos parentes mais distantes.
O Sr. Borges em retribuição a grande amizade que criou com o amigo que salvou a vida de sua esposa e filhas, decidiu partilhar a fazenda com o Jerônimo. De comum acordo, as áreas mais selvagens ficaram com o amigo para exploração de atividades turísticas, o que eram ricas em diversidade de vida animal e um verdadeiro laboratório de ciências do meio ambiente. Jerônimo ficou muito feliz e, mais ainda com a notícia de que tinha ganhado uma ação trabalhista movida pelos advogados do Sr. Borges contra os exploradores de trabalhos escravos da região de florestas no outro lado do estado. Esse pessoal que praticava o serviço escravo de corte de madeira nobre era formado de gente grande do Estado que foram presos e processados. O processo indenizatório demorou a ter um desfecho final, pois o poder recursal dos envolvidos contou com a conivência de políticos da Capital do País. O dinheiro que já estava à disposição do Jerônimo era tal como nunca sonhado antes. A felicidade deste homem era tanta que, uma vez outra, se retirava a um lugar isolado para chorar. Tinha, agora, um outro sonho: Ajudar os amigos que deixara lá na sua terra natal, montar uma escola para a criançada da região que estudava muito longe de suas casas e, cuidar melhor da sua família. Tinha agora, sob sua tutela, uma irmã com duas sobrinhas, uma cunhada e os pais de sua esposa que já estavam velhinhos.
O comando de uma empresa de turismo ambiental que foi criada para explorar o potencial turístico da região ficou a cargo do seu filho Gabriel. Jerônimo era agora, um homem realizado, em paz e muito amado. Era também, um homem eternamente agradecido a DEUS.

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Todos a postos?   Essa é a pergunta usual do Jerônimo aos turistas prestes a embarcar no barco que os conduziriam aos rios do Pantanal  para visualizações e filmagens da vida selvagem da região.
Ele, agora, não é mais um valente vaqueiro pantaneiro a conduzir boiadas nas extensas planícies alagadas, mas um empresário de sucesso da área turística na região. O barco lancha avança nas águas serenas e o deslumbramento dos turistas é bem visível ali no meio de tamanha área alagada, repleta de vida.

A vegetação meio submersa, os crocodilos se atirando na água, capivaras, lontras, cervos, pássaros e outros animais, tudo junto colocam em festa os olhos dos turistas que não param de registrar através de câmeras, celulares e filmadoras. A voz serena e resoluta do Jerônimo, o guia turístico, que atento observa todos os movimentos nas margens dos rios, indicando aos observadores a presença da vida ativa onde rapidamente focam seus aparatos de registros. O deslumbramento é geral diante de visões tão espetaculares da vida animal naquela região.
Repentinamente, Jerônimo observa o que parecia impossível aos seus olhos: Uma enorme onça na margem do rio que parecia ter um enorme interesse pelo barco que se aproximava lentamente em direção a ela.

O barco encosta na margem com muito cuidado e o Jerônimo desce, pedindo ao seu filho Gabriel, piloto da lancha  para se afastar  dali.  Sob o olhar apreensivo e estarrecido dos turistas, Jerônimo cautelosamente se aproxima da onça, reconhecendo   de imediato  a “saidera”, como o seu par da contenda de anos atrás. A onça percebe naquele homem, o seu oponente que quase lhe ceifou a vida. A uma distância de uns cinco metros, os dois se abaixaram e se focaram em reverência mútua, paralisados, deixando os observadores tremendamente apreensivos. O Jerônimo, em uma linguagem mental, reverencia o animal dizendo: Eu te agradeço por não teres tirado a minha vida naquela ocasião em que travamos aquela luta terrível. Eu te felicito e externo a minha eterna gratidão. O felino, enquanto paralisado, ali frente ao seu oponente, parece ter feito o mesmo e, dito mentalmente: Obrigado por teres preservado a minha vida quando pediste para que não atirassem em mim quando desisti de ti trucidar. Que diabos de dedos você tem que quase me arrancaram o pescoço! Estive por alguns instantes entre sobreviver e morrer. Teu gesto, mesmo ferido mortalmente, fez com que a minha vida fosse preservada. Eu te agradeço e, partamos em paz.

Neste instante, a “saidera” deu meia volta e, lentamente entrou na mata ali perto. Os turistas, atônitos, maravilhados  e surpreso com a cena inédita, captada de surpresa, respiraram aliviados e, encantados bateram palmas, pois sabiam do ocorrido entre os dois. Foi uma cena memorável e única. Muito mais valiosa do que um registro da caçada de um predador a uma presa que tanto queriam ver. Foi demais.
O Jerônimo e a “saidera” nunca mais se encontraram. O guia turístico terminou o seu dia muito feliz. Retornou para a fazenda junto com todos, pois sabia que o seu grande amor lhe aguardava com ansiedade… A Clara dos seus sonhos.
Pi-Nath

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